José Júlio Sardinheiro

O bom e o bonito

José Júlio Sardinheiro

Por favor, conta-me…

A narrativa, que durante muito tempo prosperou no círculo do trabalho manual – do camponês, do marítimo e, depois, do homem urbano – é, ela também, como que uma forma artesanal de comunicação. Não pretende transmitir o que há de puro em si nas coisas, como o fazem a informação ou o relato. A narrativa mergulha as coisas na vida do narrador para depois as ir aí buscar de novo. Por isso a narrativa tem gravadas as marcas do narrador, tal como o vaso de barro traz as marcas da mão do oleiro que o modelou.

Walter Benjamin

Sempre gostei de ouvir contar histórias e talvez por isso admire bem quem as conta. Em mim, escutar histórias, episódios da vida de quem os relata ou de quem, os ouviu e, no momento que os conta, fez seus, é memória da mais recuada infância. Lembro que na minha terra as histórias raramente começavam com o tradicional “Era uma vez…”; isso era coisa dos livros que não servia bem os propósitos das narrativas que ouvia. Era normal narrar um episódio começando por “Uma ocasião estava eu…” e depois continuava, sempre na primeira pessoa, mesmo quando o narrador apenas tinha sido testemunha de algo, assumindo o discurso directo do protagonista. Foi assim que ouvi falar das peripécias de um tal Zé Moca, calceteiro de profissão, célebre por inventar patranhas e exageros do calibre do famoso Barão de Münchhausen que só muito mais tarde vim a conhecer. Na verdade, nunca ouvi da sua boca essas inverosímeis maravilhas, mas apenas por interpostos narradores. Um dos episódios mais antigos relatava o percurso entre o quartel da cidade onde cumpria o serviço militar e a nossa vila; percurso esse montado numa potente moto emprestada pelo comandante do quartel de quem dizia ser o “impedido”. Já próximo, começou a avistar gente que trabalhava nos campos acenando-lhes e causando grande admiração e lá ia nomeando a sucessão dos lugares. Isto, em princípio nada teria de extraordinário a não ser que no relato do que se passa em meia dúzia de quilómetros encontrava gente a desempenhar tarefas agrícolas de todo o ciclo anual, coisa que era imediatamente detectada pelos ouvintes bem conhecedores dos trabalhos do campo. Uma outra que ouvi era relacionada com a sua profissão de calceteiro. É sabido que, para além daquele martelo especial com que talham as pedras e as batem para as colocar no sítio, é preciso um maço (naquela altura um cilindro de madeira de dois palmos de altura com um cabo vertical) para bater e apertar a calçada. Pois o Zé Moca gabava-se, nas tabernas da vila, de ter feito um grande investimento em cabos para martelos e adiantava “Agora mandei vir da Alemanha um maço eléctrico todo automático; estive a telefonar e já foi desalfandegado no Porto… Vem por aí abaixo a bater calçada sozinho. Uma maravilha! Quando chegar cá já está pago!”.

Curiosamente, a psiquiatria criou no início dos anos 1950 o rótulo diagnóstico de “Síndrome de Münchhausen”. Ainda que não se aplique a estas situações – tendo antes a ver com a simulação de sintomas com vista a obter algum tipo de benefício, por vezes pouco óbvio – faz-me pensar no que poderá haver de necessidade para que algumas pessoas desenvolvam uma capacidade muito imaginativa para contar histórias. Acho que sempre me interroguei sobre a razão de ser de algumas pessoas quase se especializarem neste tipo de narrativa que pela sua mais do que evidente inverosimilhança não pode querer enganar ninguém.

Na área dos cuidados de saúde a que me tenho dedicado na maior parte da minha vida, em termos de trabalho, estudo e ensino, tenho aprendido bastante sobre as histórias que se contam, mas, sobretudo sobre o modo como elas são escutadas pelos profissionais de saúde. Há mais de trinta anos encontrei um livro de um quase desconhecido neuropsiquiatra chamado Oliver Sacks, cujo título, O homem que confundiu a mulher com um chapéu, escondia uma série de “histórias clínicas romanceadas”. A partir daí comecei a olhar e a escutar as narrativas que as pessoas trazem associadas à sua condição de “doentes” ou “pacientes” ou “clientes”… Muitas vezes a minha observação incidia era sobre quem escutava, seleccionava e retinha factos de modo a dar-lhe significado clínico. Valerá a pena entendercomo significado profundo do termo clínico que fica diminuído quando tomado como equivalente a médico. Na verdade, o chamado modelo médico, que contamina de forma totalitária toda a linguagem simbólica dos cuidados de saúde, acabou por cercear a narrativa e a própria clínica, reduzindo-a muitas vezes a um silêncio onde só falam os dados objectivos dos exames. Mais do que isso, como ouvi em tempos numa série de entrevistas ou conversas com João Lobo Antunes, na Antena 2, este modelo já “educou” o público para não fazer perder o precioso tempo dos médicos e outros profissionais com historietas, a ponto de, perante uma tentativa de escuta clínica, já se ter ouvido “o senhor doutor tem aí todos os exames o que é que precisa saber mais?”.

Um estudo nos EUA, de perto da viragem do século, citado por Rita Charon, dava conta de que em média, um médico interrompia a narrativa do doente ao fim de dezoito segundos, sempre que este se afastava do guião do médico. Esta atitude, muito frequente principalmente nos médicos impede a expressão do significado dos acontecimentos de saúde e doença na vida da pessoa, centra a atenção na doença e reduz a pessoa a um mero doente portador de sintomas. É mesmo, a referida médica e professora da Universidade de Columbia, Rita Charon que se torna a principal mentora de uma corrente designada como Narrative Medicine associando o conhecimento da literatura, artes e humanidades aos cuidados de saúde.

Os cuidados de saúde podem assim evoluir com base na “competência narrativa para reconhecer, apreender, interpretar e ser tocado por histórias de doença” de modo a procurar dar significado à experiência individual de quem procura ajuda num profissional de saúde.

Como tudo poderia ser diferente se em vez de “então diga-me lá do que é que se queixa…” o profissional abordasse a pessoa, cumprimentando-a, fazendo-a sentir bem-vinda, apresentando-se e pedindo: “por favor, conte-me o que acha que é importante eu saber para cuidar de si e da sua saúde”.


Felicidade obrigatória

Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz


(João e Maria – Chico Buarque e Sivuca)

Às vezes surgem-me palavras que nunca ouvi ou li, mas penso sempre que já devem existir e, logo que possa vou procurar. Primeiro, veio-me a ideia da “felicidade” tornada quase obrigatória em todos os momentos da vida, o que faz com que alguém, que num determinado momento não se sente feliz e animado, se converta em alvo de uma espécie de bullying de uma espécie agentes especiais de uma determinada psicologia dita “positiva” enxertados em coaching e good vibes. Em seguida surgiu-me a palavra para designar esse estado. Também ela enxertada na língua inglesa: Happycracia. Fui ver e o termo tem, de facto uma utilização considerável, pelo menos, em inglês (happycacy), e também aparece em francês (happycratie) figurando em títulos de livros (já há ensaios e teses sobre o assunto).

Vem isto a propósito de algumas conversas em que vejo, de um lado, pessoas sofredoras e, do outro, sempre alguém que sabe muito bem o que é isso e desata a dar conselhos e sugestões por vezes até em tom imperativo: “tu devias era…” ou mesmo “tens de…”. O que se torna evidente é que a pessoa sofredora, ao fim de poucos minutos, já se está a sentir mais desgraçada e incapaz, completamente inábil para lidar com as dificuldades que no fim de contas são “naturais”, “acontecem a toda a gente”, “ todos já passámos por isso”, “e tudo se há-de resolver”, vamos “dar a volta por cima”… Talvez comece a sentir inveja das capacidades da pessoa que a aconselha; talvez seja brutalmente invadida por um sentimento de revolta e de uma raiva que não pode expressar, porque o conselheiro está cheio de boas intenções de ajuda sincera.

Quem gosta de passear por livrarias apercebe-se que ao longo dos anos as prateleiras de livros, chamados de “autoajuda”, “motivação” e “psicologia positiva” têm aumentado na mesma proporção dos corredores de comida e acessórios para animais nos supermercados. Não sei se isto tem alguma relação entre si ou com o aumento de consumo de medicamentos psicotrópicos, mas podemos sempre consultar o pêndulo biomagnético…

O que intriga a minha curiosidade é este fenómeno triangular que envolve pessoas que sofrem, outras pessoas que estão sempre prontas para e julgam saber ajudar e toda uma imensa indústria orientada para felicidade. Cada uma destas vertentes, merece uma análise mais aprofundada que certamente já está feita. Do lado das pessoas que sofrem, a matéria é delicada e até pode parecer que se desvaloriza o sofrimento face a narrativas por vezes hiperbólicas – o sofrimento e a dor só são medíveis na subjectividade – contudo é preciso ter em conta o que já é um contexto cultural, pelo menos na nossa sociedade, de não haver outro nome para designar a tristeza face a uma perda sem ser “depressão” e de chamar “burnout” ao cansaço e contrariedades no trabalho. Há muitos, muitos anos ouvi de um ilustre e velho psiquiatra que o ser humano é perturbável e acrescentava que tem em si, igualmente, os mecanismos para reagir à perturbação. O que parece vir acontecendo é que há muita gente que ignora esta capacidade e torna-se alvo de uma crescente indústria de “terapeutas”, “coaches”, “mentors”, e outros recursos e respostas motivacionais, em tudo à semelhança de qualquer produto comercial.

Tudo isto, na melhor das intenções de ajudar as pessoas a ser felizes. E parece que funciona, pelo menos na aparência. São inúmeras as pessoas que se sentiram ajudadas com estes terapeutas e aprenderam muito nos muitos livros sobre “como ajudar-se a si próprio” e usam esse seu saber, também de experiência feito, tornando-se também “motivadores positivos” capazes de saltar a qualquer ai deixado escapar por alguém das suas redondezas…

A maior parte usa apenas o fraseado do senso-comum, mais ou menos pincelado por algumas ideias da chamada “psicologia positiva” e alguns estudiosos um pouco mais sérios já designaram como “positividade tóxica”.

Talvez devêssemos procurar algum estatuto de ciência para a pragmática cínica de Álvaro de Campos:

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
 

Sabe-se lá! Se assim, entre parêntesis, não aparece uma placa com uma seta de sentido obrigatório para a Felicidade… Eu já vi uma que dizia “Paraíso”…


Espantar males

Não sou capaz de imaginar alguém que nunca tivesse cantado. Talvez uma pessoa surda de nascença. Fora isso, parece que o canto surge quase como “instinto inato” de protecção, provavelmente com a função de estabelecer uma conexão, um laço ou vínculo. Deve ser por isso que surge tão espontaneamente entre uma mãe e o seu bebé na mais tenra idade. Canta-se a alimentar uma criança, enquanto se veste, para adormecer; canta-se para brincar, para aprender movimentos; canta-se quando se passeia… E se pensarmos na presença do cantar na história da humanidade, encontramos testemunhos bem longínquos do canto associado a diferentes funções da vida e até a diferentes temperamentos dos povos, como por exemplo, na antiga Grécia, donde herdámos os chamados “modos gregos”.

Por vezes encontramos pessoas que se recusam a cantar e dizem não saber cantar. Apetece-me sempre perguntar: como é que aprendeu? Mas contenho a pergunta. Debaixo do aparente nonsense pode estar a questão fundamental. Se alguém diz não saber cantar, essa pessoa deve ter aprendido a dizê-lo e a tornar-se a si própria uma espécie de “deficiente” do canto. Há quem sustente que se passa o mesmo com o desenhar. Dêem um papel e um lápis a uma criança pequena e sai um desenho. E cedo começa a traduzir o que desenhou. Até “desaprender”. E aprende a dizer que não tem jeito para o desenho…

O mais maravilhoso do cantar surge quando se canta em grupo. Sabe-se que cantar em grupo faz parte das actividades comunitárias há milhares de anos e que é das mais emocionantes e transformadoras de todas. Diz a investigação nesta área que os cantavam em grupo desenvolviam uma união mais forte e foram os que sobreviveram. Pensa-se que a libertação conjunta de serotonina e ocitocina produz uma forte ligação entre as pessoas e até é capaz de sincronizar as batidas do coração. Cantar torna-nos mais fortes, constrói lealdades e traz melhores sentimentos e cooperação.

Cantar enche-nos de alegria e traz, de borla, extraordinários benefícios para a saúde quer do ponto de vista físico, como emocional e social. Entre estes benefícios contam-se o reforço do sistema imunológico, o exercício respiratório e circulatório, a melhoria da postura corporal, do sono; cantar é um antidepressivo natural, reduz o stress, melhora a concentração e a memória; alarga o círculo de amizades, aumenta a confiança e as habilidades de comunicação. É também uma forma de promover a apreciação de outros cantores, de outras formas e estilos musicais. Cantar abre-nos para o mundo.

Porque é que não cantamos mais?


e-Blue indo

Conheço-me desde sempre a gostar das palavras. Desde pequeno que brinco com elas, mesmo quando ainda não sabia que os sons com que se diziam as coisas e que me saíam da boca se chamavam palavras. Lembro-me da palavra abóbora (talvez dissesse “abóbra”, mas é exactamente o mesmo) e como brincava com ela até a transformar noutro som só meu. E lembro-me de abóbora porque havia no quintal onde brincava sozinho um monte de abóboras com quem dialogava e que era uma verdadeira plateia quando cantava para uma batata espetada numa cana a fazer de microfone. Sempre brinquei com as palavras.

Havia na família, do lado do meu pai, uma certa tradição de fazer trocadilhos, rimas e insinuações pantomineiras e, quando se juntavam em festas ou casamentos aquilo era um jorrar de ditos e apólogos ou “vivas” aos donos da casa, à cozinheira, aos noivos… Fascinava-me a agilidade verbal (e verval) e a maior parte das vezes nem percebia porque todos se riam. Aquilo ficava-me na cabeça e depois reinventava esses diálogos mesmo sem lhes apanhar qualquer sentido. Era o som das palavras, os ritmos, as inflexões, as cacafonias… Era como se fosse uma outra língua.

Gosto muito da nossa língua. Penso que não deve ser diferente para outros falantes naturais de outras línguas, porque é na nossa língua-mãe que melhor encontramos como nos exprimir. Um dia encontrei um colega espanhol, da Andaluzia, que me contou que a mulher, nascida no País Basco de lá saiu muito pequena e nunca terá aprendido a falar a língua basca (euskara) no seu curto convívio com ela. Acontece que quando nasceu o seu primeiro filho, naquele primeiro momento mágico em que se olham, as palavras de ternura e felicidade que lhe saíram foram em basco. Deve ser por isso que se chama “língua-mãe”.

Nas últimas duas décadas e a propósito de uma salganhada a que chamam Acordo Ortográfico vi surgir paixões inflamadas e doridas de muita gente a reclamar-se – muitas vezes num português sofrível ou mesmo mau – defensores da língua e da sua pureza contra os ataques vândalos e sei lá que mais. Declaro aqui que não uso o dito “acordo”, mas que isso não é por razões linguísticas – a escrita é apenas uma convenção gráfica com que representamos a fala – mas por razões políticas – o dito acordo não resolve problema nenhum, veio complicar o que estava mais ou menos estável e foi uma ilusão de um negócio internacional que saiu furado. Posto isso, sou contra e escrevo como me apetece e violo a regra actual e, quando calha e me dá jeito, violo também a antiga.

É claro que as línguas evoluem, incorporam todos os dias elementos de outras línguas e isso vai acontecendo cada vez mais e só pode ser bom para a comunicação entre os povos. O ideal seria cada um poder exprimir-se na sua língua natural e ser entendido por outros que fariam o mesmo. Há cerca de vinte anos participei num acontecimento no Parlamento Europeu e assisti a algo parecido. Alguém faz uma comunicação em francês e na discussão há perguntas em inglês com respostas que começam em inglês e acabam em francês… Lembro-me de ter pensado como seria bom que todo o mundo se entendesse assim.

Não faço ideia de quantas línguas se fala no mundo inteiro. Serão centenas, milhares… Há países em que se falam várias línguas diferentes, a ponto de ser necessária uma outra língua para comunicar. O inglês impôs-se mais ou menos como língua-franca e cumpre muitas vezes essa função. Mas não é o inglês oficial, é o broken english ou mesmo bad english que se ouve e se lê por todo o lado, incluindo contextos académicos.

Estou convicto de que dentro de pouco tempo o mundo falará uma espécie de crioulo, com base neste inglês deturpado onde se vão incorporando termos e expressões das mais diferentes línguas do mundo.

Há cerca de vinte cinco anos, no Livro Branco sobre a Educação e a Formação: ensinar e aprender rumo à sociedade cognitiva, já se preconizava como elementar o domínio de três línguas europeias, ou seja, a natural e mais duas outras. Não sei bem como estamos, mas pelo que me é dado a ver nos mais jovens o inglês é língua comum e é muito interessante ver como o programa ERASMUS fez mais pela construção europeia do que tudo o resto. Até o conceito de língua-materna vai mudar. Já em muitos sítios, a língua que se fala em casa é uma terceira língua que não é a do pai nem a da mãe e também não é a que se fala na escola.

Uma visão moderna da Babel, uma Nova Babel para um novo entendimento do mundo. Não para chegar aos céus, mas para chegar à paz. Desejo.


É tudo mentira!
José Júlio Sardinheiro

Grande parte do meu tempo é ocupado a pensar em algo que poderia genericamente circunscrever como “conhecimento”. Neste grande saco meto tudo aquilo que julgo já saber, o que vou tentando aprender, o que desejo conhecer. Interrogo-me muito sobre a razão de querer conhecer o mundo em que vivo e saber coisas… Aquilo que vou percebendo que outros sabem, também me ocupa, às vezes, com uma certa dose de inveja que não gosto de assumir. É que há gente que sabe tão mais do que eu sobre tantas coisas!... Onde realmente eu quero chegar é ao jogo que jogamos uns com os outros quando nos encontramos. Precisamos de saber tanto para realizar esse encontro que seria impossível enumerar. Mas poderá estar aí o grande desafio de algo a que alguns chamam de verdadeira cultura – tudo aquilo que nos permite entrar em contacto com outros e entendermo-nos nas nossas diferenças e nos diferentes modos de ver o mundo e de viver. Se houver alguma medida para avaliar a densidade cultural de cada um, talvez ela se traduza pelo número de pessoas de diferentes contextos de vida com as quais somos capazes de comunicar.

Muita da nossa comunicação com os outros desliza sobre uma capa mais ou menos lubrificada de representações, mitos, histórias, anedotas, provérbios, lugares-comuns, rituais… É por isso que “candeia que vai à frente” se pode ligar a outro provérbio e dizer que “um dia lá deixa a asa” e esta mixórdia sem sentido ter afinal um outro sentido para quem o apanha.

Este discurso pode não ser compreendido por um estrangeiro ou, até mesmo, por um português das gerações mais novas. Já não se vê ninguém de candeia acesa (ou andar de candeias às avessas) nem ir à fonte de cântaro à cabeça. De qualquer modo, este saber baseado em provérbios estará já mais destinado a ficar encerrado em alguma literatura realista e neo-realista do que ter alguma utilidade para os night runners ou para o abastecimento de água às populações.

Olho para uma imagem que representa um quadro de Magritte, aquele que mostra um cachimbo e tem escrito que não é um cachimbo. Penso que estamos ambos num nível de realidade bastante semelhante, ou seja, basicamente coligados por uma artística irrealidade. Eu não vejo o cachimbo que não é cachimbo no quadro que Magritte pintou, mas uma das milhentas fotografias que alguém tirou e que foi reproduzida talvez milhões de vezes e espalhada pelo mundo. Aquele cachimbo que não é um cachimbo, não o é aos milhões. Não sei quanto vale o quadro, mas fica demonstrado que uma mentira, mesmo dizendo que o é à vista de todos, pode valer muito dinheiro.

E será mais ou menos assim em todas as artes. Se não fosse a mentira as artes não tinham piada nenhuma.

O teatro e o cinema ilustram bem até onde o valor da mentira pode chegar. O palco não é um quarto onde um casal confronta as suas angústias e contradições. Um quarto a que falta uma parede para que o público possa assistir a tudo. Os actores sabem que não são aquele casal, mas comportam-se como se o fossem; e sabem que aquele quarto só tem três paredes e tudo se passa como se aquela intimidade fosse verdadeira. O público sabe que o que está a acontecer não é verdade e, apesar disso emociona-se verdadeiramente.

Um romance escrito na segunda metade do século XVIII, pôs os jovens a vestir-se de calças amarelas e coletes azuis e desencadeou uma onda de suicídios por desgosto de amor, tal como o que acontecia com o personagem da ficção de Goethe.

A cumplicidade com a mentira é um fenómeno poderoso. Os políticos sabem isso bem.
E sabem também que toda a história do nariz do Pinóquio é uma redonda mentira.


Atirei o pau ao Schrödinger…
José Júlio Sardinheiro

Demasiada fé na ciência até pode dar em milagre que ninguém se importará. Claro que há um complicado problema metodológico a ter em conta, mas isso não é nada quando comparado com a experiência de Schrödinger, aquela em que ele fecha um gato numa caixa com material radioactivo, um frasco de veneno e um contador Geiger. Não sei se interessa as quânticas vidas que tem um gato, nem se isso interessa o campo científico.

Há um lado da ciência bastante interessante que alguns cientistas viraram e reviram com mestria poética. No fundo – e na forma – quando ciência e arte se juntam indisciplinadamente e dançam no terreiro transpoiético é que “o mundo pula e avança” como escreveu sabiamente o poeta António Gedeão que durante algum tempo dormiu com a mulher do cientista Rómulo de Carvalho sem que ela percebesse.

É bem provável que a maioria dos processos da ciência comece com um “aqui há gato…”. É a curiosidade, a desconfiança sobre a aparência das coisas, o reparar naquela pontinha de rabo de fora que mais ninguém viu, até ao eureka final, que normalmente não é o fim de nada. Na fé religiosa é tudo bem mais simples. Deus criou o mundo e tudo o que nele fazia falta e pronto. Foi descansar. As gentes da ciência nunca descansam e raramente ficam descansadas com os resultados a que chegam. É uma inquietação.

Na tradicional canção infantil, hoje quase banida, pelo menos na sua versão primitiva, todos aprendemos a cantar “atirei o pau ao gato, mas o gato não morreu”. Não sabemos se intenção seria matar o gato, e estamos perante uma experiência falhada, ou se era apenas assustar o gato e aí caímos no campo de alguma indeterminação de resultado, ainda que com elevada probabilidade de o gato ter dado um salto (quântico?) e desatar a fugir e esconder-se em sítio seguro até as coisas acalmarem. Certo é que terá dado um berro que assustou a Dona Xica. Portanto, o gato não morreu, ter-se-á assustado e soltado um berro que por sua vez assustou uma senhora. Isto de atirar alguma coisa a um animal é, só por si, bastante reprovável nos dias de hoje e até pode configurar um pan-demónio de crimes e contraordenações e, se houver intenção de matar, tudo depende do pau e da pontaria. Em ciência isso terá outros nomes, mas dá mais ou menos no mesmo. Em mecânica quântica, poderemos estar a falar de um par de variáveis complementares, mais propriamente de um lugar que um corpo ocupa no espaço – posição – determinado por um vector que dará uma informação precisa sobre a trajectória que o pau deve seguir. Importante também é o chamado momento linear que se calcula facilmente multiplicando a massa do pau pela velocidade com que é lançado. É só fazer as contas para constatar que em princípio o que temos como certo é uma grande incerteza.

Fiquem, pois, tranquilos a Dona Xica e todos os defensores dos animais que cientistas como Schrödinger, Heisemberg ou Plank não torturaram animais para elaborarem as suas teorias. Mesmo o famoso “experimento” de Schrödinger não passa de uma simbólica congeminação de fórmulas e hipóteses sobre hipótese e outras coisas que nem tento perceber.

Ainda assim e para que ninguém fique angustiado só de pensar nestas hipóteses de sofrimento animal, soube-se recentemente que uma equipa de cientistas da Yale University, liderada por Zlatko Minev, descobriu como salvar o gato de Schrödinger de estar morto e vivo simultaneamente, através da previsibilidade do momento em que ocorre o salto quântico.

Resta agora saber se sempre que um qubit salta cairá de pé.


Absoluta  mente
José Júlio Sardinheiro

“Se creio em Deus? Não, creio em algo… muito maior”
(Umberto Eco, citando um dito atribuído a Rubinstein)

Vou lendo aos poucos um livro de Umberto Eco (Aos ombros de gigantes, Gradiva, 2018). Leio devagar e páro frequentemente para pensar. E volto atrás e releio um capítulo (o quarto, na ordem, já que não são numerados) chamado Absoluto e Relativo. O que se segue é mais ou menos o que me acontece no espaço de uma entrelinha. Os percursos da mente são tramados. Não há sentidos proibidos, cancelas, barreiras… O espaço e o tempo são galgados num voo imparável…

É relativamente comum ouvir-se dizer “Ah, isso é relativo!”, ou até “Tudo isso é muito relativo”. Parece que isto tem a ver com o Einstein. Provavelmente é verdade, mas também é provável que não seja bem pela razão que a maioria das pessoas que usam estas expressões julgam. Sem nunca ter lido uma linha escrita por Albert Einstein, um grupo de adolescentes, com arrogos de intelectualidade, discutia o que julgava ser a Teoria da Relatividade quando na verdade o que acontecia era um fascínio quase erótico pelos paradoxos emergentes (um dia voltarei a este soberbo enunciado) que misturava física com filosofia e confundia a relatividade com o relativismo. Dizer que “tudo é relativo” era assim uma espécie de moda a que não se escapava apesar daquele espinho contraditório cravado à nascença naquela declaração absoluta. Mas isso não assustava aqueles adolescentes de há quase cinquenta anos e rapidamente a formulação evolui para “tudo é relativo, incluindo esta afirmação”. Depressa alguém se apercebeu do carácter também absoluto desta afirmação e deve ter sido por isso que começamos a interessar-nos por outros temas e alguns de nós até se encontravam amiúde num certo “baile de garagem” que, por acaso eram num sótão transformado em boite.

Pouca gente se terá continuado a interessar pela teoria da relatividade, em boa parte devido ao poder absoluto das hormonas. Tirando um ou outro, mais nerd (o conceito não se usava na altura) com o destino marcado para seguir para o Técnico (Instituto Superior Técnico) excitar-se com Física Teórica, os outros eram rapazes relativamente normais e estavam mais interessados na “química” com a rapariga que tinham conhecido no tal baile… E excitavam-se com isso. Absolutamente. Isto é, sempre.

Muito mais tarde é que percebi que o interessava ao Einstein era o absoluto e não o relativo. Quando publicou a sua teoria, em 1905, nunca lhe chamou “da Relatividade”, nome que só se viria a utilizar mais tarde, mas sim, “Electrodinâmica dos corpos em movimento”.

Pois é exactamente a electrodinâmica dos corpos em movimento que sempre me interessou. A energia coregráfica fascina-me mais que todos os mapas do universo. Claramente.


o bom e o bonito (vai ser) 1
José Júlio Sardinheiro

"É mais cómodo acreditar no que nos consola. Mais difícil é perseguir a verdade. Pois o verdadeiro não precisa limitar-se ao belo e ao bom. O amigo da verdade não deve pretender paz, calma e felicidade, pois a verdade pode ser muito feia e repulsiva".
(Nietzsche).

Dizia-me que ia montar um negócio…
E eu que às vezes sou moço assim de acintes ao contrário mandei-lhe logo sem pensar: – E eu vou montar um ócio!
A minha leviandade leva-me por vezes para becos-sem-saída ou, para apurar mais a redundância aforística, a meter-me em camisas de onze becos, ou bicos onde uns trazem água e outros apenas um grão de metafísica na asa.
Lembrei-me então que ócio, ao contrário do que muita gente julga, não significa não fazer nada e ficar ali de papo para o ar – embora isso do papo para o ar até possa ser a verdadeira alma do ócio – e não produzir algo que possa contribuir para o PIB e ser tributado pelo valor acrescentado. Não. O ócio é coisa de pensar para além das minudências dos negócios e nem sequer fica logo assim ao alcance directo de quem nada tem para fazer, por estar desempregado.
O verdadeiro ocioso deverá ter a barriga cheia quanto baste, sentir-se reconhecido na sua existência como pessoa, ser capaz de amar e de se deixar amar e estar mais ou menos disponível para se dedicar a uma actividade que lhe pode ocupar a maior parte do tempo… Estão a ver?
Eu não estudei grego e nunca percebi como é que me podia ver grego para entender aquelas palavras feitas de pis, alfas, lambdas, ómegas e rós, mas que felizmente há sempre alguém que translitera isso para algo a que estamos mais habituados.
Há uma palavra grega que podemos escrever skholé que significa “o lugar do ócio” – “o tempo dedicado ao estudo e à meditação”. Em latim, língua onde se chega mais comodamente, temos schola ou scholae. Ócio é o que se devia aprender na escola.
Pois. Vou então montar uma escola de ócio. Preciso dum sócio.
A lassidão do post-prandium costuma ser boa para o ócio. É assim um de papo-para-o-ar frequentemente bastante produtivo e que também é uma grande escola.
Procurar respostas a perguntas pouco comuns tais como:
Como se chamam os irmãos da irmã Lúcia?
De que se alimentava Buda?
Maomé bebia chá de Ceilão?
Que número de sapatos calçava Jesus Cristo?
Dizem-me aqui que isto não tem utilidade nenhuma…
Ah não? Então, seria bom que o demonstrassem!
Agora vou tomar um chá e escutar saturno.