Memorias de um menino que vivia num bordel

Fabio dAbadia de Sousa

Memórias do Futuro

F�bio d'Abadia de Sousa

Memórias de um menino que vivia num bordel

Um pr�ncipe tira minha m�e �daquele lugar�

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A can��o �Eu vou tirar voc� desse lugar�, do cantor Odair Jos� era uma das mais ouvidas, nos primeiros anos da d�cada de 70, nos bord�is da cidade de An�polis (GO). Em plena ditadura militar, quando a censura n�o permitia que se falasse, em uma can��o, as palavras cabar�, bordel, zona etc. No entanto, at� um menino de seis anos, como eu naquela �poca, entendia que o �desse lugar� se referia a um local de prostitui��o. A can��o narra a hist�ria de um homem que foi a um prost�bulo porque �precisou de carinho� e que ele se apaixonou pela mulher com quem fez sexo. Ent�o, ele promete: �Eu vou tirar voc� desse lugar\ Eu vou levar voc� para ficar comigo\ e n�o interessa o que os outros v�o pensar...�

Pelo que eu ouvia das conversas de minha m�e com suas colegas, quase todas as prostitutas tinham o sonho de serem tiradas �daquele lugar�, apesar de n�o acreditarem muito em pr�ncipes encantados. Minha m�e, no entanto, foi surpreendida pela vida com um �pr�ncipe� que a tirou �daquele lugar� e que a levou (com filhos e tudo) para ficar com ele. Vicente, este era o nome do pr�ncipe de minha m�e, tamb�m n�o se interessou pelo que os outros pensaram da sua atitude, inclusive sua fam�lia. Ali�s, Vicente tinha uma fam�lia que possu�a uma casa bonita e grande em um bom bairro de An�polis. Mas, para viver com minha m�e, ele teve que sair de sua bela casa. Eu n�o lembro direito qual era a profiss�o de Vicente, se � que ele tinha alguma definida, mas, com seu trabalho, conseguia pagar o aluguel de barrac�es em bairros da periferia de cidade e colocar comida na mesa, como um pai de fam�lia decente faz. Eu lembro, por exemplo, de ele levar minha m�e, eu e minha irm� para fazer grandes compras de alimentos no supermercado. Vicente adotou a fam�lia de minha m�e como se fosse sua!

No entanto, Vicente tamb�m cumpriu a profecia popular que diz que todo pr�ncipe vira sapo! Uma pena! Minha irm� e eu �ramos felizes sob os cuidados de Vicente. Minha m�e tinha muitas afinidades com Vicente, inclusive o gosto pela bebida alco�lica em excesso! Nossas vidas funcionavam relativamente bem durante a semana. Mas, quando chegavam o s�bado e o domingo, sempre tinha confus�o! Os dois, como se diz na linguagem popular, �bebiam at� cair!� E caiam tanto que, �s vezes, os donos dos im�veis que alug�vamos simplesmente nos expulsavam de casa sem nem mesmo darem um prazo razo�vel para fazer a mudan�a.

Mas o pior eram as brigas dos dois. Vicente, quando b�bado, adorava quebrar os m�veis e lou�as da casa. Gostava de quebrar tamb�m a cara de minha m�e, que sempre estava com um olho roxo e escoria��es pelo corpo. �s vezes, no meio da noite, minha m�e pegava a minha irm� e eu, e fug�amos em dire��o a alguma delegacia de pol�cia, na qual ela jamais tinha coragem de entrar e denunciar Vicente. Na segunda-feira, minha m�e sempre voltava para Vicente e nossas vidas seguiam normalmente, at� que chegava um outro s�bado ou domingo.

Certo dia, um dos v�rios irm�os de minha m�e soube do que estava acontecendo. Ele apareceu em nossa casa e obrigou minha m�e a deixar Vicente. Ent�o, mudamos com ele para a pequena cidade de Leopoldo de Bulh�es (GO), onde viviam outros tr�s irm�os de minha m�e. Apesar das surras, minha m�e amava absolutamente o seu �pr�ncipe� Vicente. Ele tamb�m a amava absolutamente. Uma semana ap�s chegarmos a Leopoldo de Bulh�es, l� aparece Vicente! A se humilhar e a implorar por perd�o, Vicente jurava que n�o a espancaria mais! Mas o problema � que Vicente tinha duas personalidades bem distintas. Quando s�brio, era realmente um pr�ncipe! Mas, quando alcoolizado, virava um monstro, que n�o chamarei de sapo para n�o ofender os bichinhos!

Vicente prometeu algo que o seu lado obscuro n�o conseguiria cumprir jamais! As noitadas regadas a muito pinga logo voltaram. E com elas, os espancamentos de Vicente contra minha m�e. At� que um dia, tr�s dos quatro irm�os de minha m�e se juntaram e atra�ram Vicente para uma emboscada, onde o mataram a golpes de machado, como soube posteriormente! A fam�lia de Vicente nunca pode enterrar o seu corpo, que jamais foi encontrado. Este foi o fim do pr�ncipe de minha m�e! Ela nunca mais seria amada como Vicente a amava. Ela nunca mais seria esmurrada como Vicente a esmurrava! E assim terminou talvez a maior hist�ria de amor da vida da minha m�e. Na �poca, talvez para suportar o peso da situa��o, fiquei totalmente indiferente! At� porque n�o podia fazer nada. Mas hoje percebo que minha m�e sofreu muito em seu relacionamento com Vicente. Percebo tamb�m que a vida dos dois foi um �microcosmo� da crueldade da sociedade brasileira, que cria os meninos exatamente para serem como Vicente foi: um monstro que expressa a sua virilidade por meio de gritos, chutes, murros, pontap�s, facadas, pauladas e tiros. Sim, minha m�e sofreu! Mas Vicente tamb�m foi v�tima desta sociedade extremamente violenta e que produz anualmente estat�sticas assustadoras de mutila��es e assassinatos de mulheres e, � claro, tamb�m de homens! Somos seres criados para o fracasso da vida em fam�lia! Somos criados para nos agredirmos e nos matarmos! Que sociedade infeliz!

E o pior � que, cerca de 45 anos ap�s a morte de Vicente, pouco mudou no car�ter violento da vida social brasileira. H� mais ou menos um ano (em agosto de 2019), por exemplo, eu andava nas proximidades do terminal rodovi�rio da cidade de Goi�nia, a capital de Goi�s, quando, ao atravessar uma feira improvisada de roupas, me deparei com um vendedor ambulante agredindo violentamente a sua companheira. O rosto dela j� estava ferido e ensanguentado e ela apenas cuspia sangue e chorava como uma crian�a totalmente desamparada. Dezenas de pessoas ao redor simplesmente ignoravam o drama da mulher espancada. Em vez de me envolver na situa��o, como j� fiz v�rias vezes ao longo da vida, eu sa� correndo em dire��o a um posto policial localizado a mais ou menos 500 metros de onde ocorria o espancamento. Eu simplesmente queria que aquele homem fosse preso em flagrante!

Eu estava chocado e as lembran�as dos espancamentos de Vicente contra a minha m�e, sempre me v�m � mente em situa��es como esta! Mas o meu choque foi maior ainda quando, ofegante, narrei a situa��o para os dois policiais em plant�o no posto. Eles riram, desdenharam e um deles, diante da minha insist�ncia, apenas disse: �N�o vamos intervir, n�o adianta, mulher gosta de apanhar!� Boquiaberto e incr�dulo, eu sa� correndo em dire��o a uma delegacia de pol�cia localizada a mais ou menos uns 900 metros de onde estava, para pedir ajuda para aquela mulher, que, naquele momento, era como se fosse minha m�e. Novamente, eu fui recebido com indiferen�a e sarcasmo e policiais civis se recusaram a tomar qualquer provid�ncia. Eu estava sem telefone celular, mas, felizmente, em frente � delegacia de pol�cia, havia um telefone p�blico que ainda funcionava (um milagre!). Liguei o n�mero de emerg�ncia e minha den�ncia, mais uma vez, foi ignorada. Chorei de raiva, chorei pela minha m�e e xinguei muito! Foi s� o que pude fazer! Esta � a sociedade brasileira! Um Estado omisso e c�mplice nos atos de viol�ncia contra as suas cidad�s! Isso em 2019! At� quando?

Um filho que j� viu sua m�e ser espancada jamais esquece o horror que � a situa��o! Mas, como estou no Brasil, eu tenho de agradecer por n�o ter presenciado minha m�e ser assassinada na minha frente, como milhares de crian�as v�em todos os anos por todos os cantos do pa�s! Em rela��o ao Vicente, eu pe�o que sua alma perdoe a nossa fam�lia! Mesmo com tanta viol�ncia e tanta dor ele foi o pr�ncipe que minha m�e p�de ter! Ele n�o teve muito a ver com os pr�ncipes de contos de fada! Mas teve a ver com os pr�ncipes poss�veis em uma terra encantada chamada Brasil! Descanse com os anjos, Vicente!