
reflexões in verso
Afonso Dias
romance do negacionismo
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romance do negacionismo
há um che bar em pristinacomo é que o che da
argentina
e como é que
sagres tem
(mas porquê este paleio
o trump fede a
bedum
o bolsonaro arrota
e em vagas de
estupidez
as coisas que eles
inventam
antes a poliomielite!
razão tinha-a o meu
pai
cale o bico engula o
chip
vacina
contra o fascismo
a estupidez é
velhaca
então tim-tim por
tim-tim
mas a quem há-de
interessar
vão lá sujar o
inferno!
vade retro lá
para trás!
10
feminina, a paz
feminina, a paz
quando as mulheres
forem
não é da natureza
feminina
há uma fragrância
há uma estética que
da mama
suave estética
que não tolera
só as mulheres
conhecem
deveriam pois ser
as mulheres
será bom
burocracia
burocracia
o regula-
a
manifesto II
manifesto II
daqui deste
pedestal
é um jogo de aventuras
fala de passos e gestos
e vos declaro o intento
e nessa longe distância
tremei de desassossego
se os olhos tiverdes cegos
e na rota sinuosa
não vos deixo ao desamparo
havemos de ter à proa
é um fado é o meu fado
eleita e aclamada
e pela qual
vale pena
soneto
o meu lugar
não me anima a intriga, faz-me azia
e a clubes de fãs não sou atreito
eu em grupos de moda não me ajeito
faz-me o verniz das unhas alergia
aquilo por que tenho simpatia
mora sossegadinho aqui no peito
com cantigas e abraços bem ao jeito
da vida com verdade e poesia
é tanto o brilharete, a lantejoula
tanto salamaleque afiambrado
e tão farta a finesse decantada
que eu quero escapulir-me a tal gaiola
no espaço dos amigos do meu lado
está sempre a minha porta escancarada
poemas da pandemia
poemas da pandemia - IV
hoje dei por
mim a pensar desertos
poemas da pandemia - III
este nevoeiro
poemas da
pandemia - II
tenho mais o que
cozinhar
mas essa morte
morreu
e aqui estamos
assim estando
um anonimato
pandemia
e o medo voou ondas
de vazio
cancelados foram
despertar
despertar
depois do longo sono
e da apatia doce
chegou o espanto feio
de carvão e aço
a desvendar o medo
e revelou-se um
inferno
que do céu não vinha
parido
pela cloaca
da ganância
fétido dos
bolores
e do veneno
cinza
então acordaste
para o verde
que
esmorecia triste
e vestiste
as rendas
de bilros
da avó
que velava desde o
longe
e recolheste o azul
da
madrugada antiga
e amassaste o pão
cheiroso e fresco
e despertaste
para
os guizos
com o melro
e a erva
e
os ovos loiros
da satisfação clara
então
esvaziaste os bolsos
da
roupa nova
de que não tinhas falta
e
atravessaste a rua
devagar
a caminho
das contas claras
e do sossego da
descoberta
que sorri e assobia
com as
crianças todas
e os animais
que nadam
e voam
e caminham
e se movem
como
as ideias
e o olhar
então
bebeste um vinho feliz
e foste novo
assim serás
26.1.2020
sabedoria
sabedoria
sei dos
treze biliões
e meio
de anos do
universo
dos quatro biliões
e meio
de tempo da nossa terra
sei da magia
genética
e do código às bolinhas
que
põe o azul nos olhos
ou o preto nos
cabelos
sei de classes
e famílias
dos animais e das nossas
e das
plantas
e das aves
e mais dos outros
bichinhos
e duns tantos bicharocos
que vagam
voam
vagueiam
tontos
de tanto
labor
sei de modos e
balanços
de modulações tonais
de
paletas e esquadrias
de regras e
temporais
de revoluções perdidas
de
maldades infernais
de mares e condimentos
óvulos e embriões
do vai-vem das
estações
de parténons e sinais
de
tábuas que ditam ordens
que ninguém
respeita mais
sei de molhos e
mezinhas
de tizanas e de vinho
sei de
mozart e camões
de tropeços no caminho
sei de quixote e ghandi
de males de amor
sei demais
filosofias viagens
dulcineias imortais
de risos sei e de
sonhos
e da essência da espera
do
mistério dos amigos
do sabor a primavera
não sei contudo a ciência
que conduz
à alquimia
ao ouro desta incerteza
que
apenas balbucia
o fio da inteligência
que saboreia o saber
que está na
tranquilidade
sei de prodígios
celestes
sei os desastres humanos
mas em resumo e verdade
não sei demais
sei de menos
30.12.2019

romance IV (da ria formosa)
romance IV
(da ria formosa)
leve e formosa é a ria
morada de pão e água
e
homens sal e marisco
no
bailado das marés
cujas
se elevam no embalo
das
medusas que esbeltas
coram vergonhas à vista
do hippocampus guttulatus
cavalo marinho chamado
altivo como um solista
em
ondulante bailado
na
transparente humidade
e tantos que a ria tinha
e que agora já não tem
pois que da china a crendice
de ressuscitar firmezas
e
saudosas competências
da
endocrinologia
fez voar
redes furtivas
e pelo
espanto embarcou
o peixe
da extravagância
rumo à
insana tolice
e o
hippocampo abalado
fez-se
deserto na ria
certo
é que rara santola
e
alguma ameijoa boa
inda
por ali passeiam
com
lingueirões e douradas
pequeninas dos viveiros
mas o berbigão a monte
que em tempos foi tapete
de areias que mal se viam
debaixo da tal fartura
já
não se pisa na borda
da
laguna espoliada
da
população que tinha
pois que até a holotúria
pepino do mar chamada
que
não tinha serventia
na
petisqueira de amigos
é
rapinada pela névoa
e
pela sombra é levada
a
ser manjar do japão
servida em prata lavrada
pobre ria transvestida
em estaleiro e vazadouro
que a navegar-lhe saudades
‘inda tem gente teimosa
que semeia amor na água
espelho que não se acanha
de brilhar a correnteza
ninfa é a ria formosa
tão de mágoa e de beleza
de esperança tão sequiosa
11.11.2018
e holotúrias roliças
asmática papelada

romance III (peregrinar a miséria)
Afonso Dias
romance III
(peregrinar a miséria)
sombra imensa
do passado
salpicado
de esqueletos
com
muita cruz e crescente
a arrastar romarias
à
rés do arame farpado
como rosário de
enguias
na correnteza
do mar
de sargaço
sempre longe
enxurradas de mulheres
em febril sonambulismo
com meninos e meninas
desabridos de fadiga
e homens cor de tristeza
peregrinam em demanda
do verde azul dum
destino
tão promessa
e incerteza
tão
miragem de milagre
que mal se sabe se há
vêm do longe mais
ermo
que há na rosa
dos ventos
dos dois
pontos cardeais
feitos de pedra e
metralha
fome a
rodos medo e sangue
vêm do sul e do leste
onde o inferno parece
ter instalado as
lixeiras
da imundície
mais podre
de que a
maldade é capaz
são rios de gente e
brilho
nos olhos que
avistam seda
e portas
escancaradas
de
braços brancos à espera
mas só rouquidão
fardada
e muralhas de
indiferença
acham à
porta do céu
fechada
a sete trancas
e onde
a humanidade
se escondeu
4.11.2018

romance II (medo)
Afonso Dias
romance II
(medo)
é o
sábio desconforto
não há areia que enrede
o medo essa mula velha
no cerne do pesadelo
afinal passada a nuvem
e o pavor que no tempo
e hologramas de pedra

romance I
(no mercado)
Afonso Dias
O Romance é uma forma poética construída em versos de sete sílabas
métricas - Redondilha Maior - e que, geralmente, conta uma história ou
fantasia a partir de situações reais ou imaginadas: júbilos e desgostos
amorosos, sorte e azar, aventuras e tormentas, vitórias e fracassos,
chacotas e lamentos...
No Séc. XX muitos foram os poetas que mantiveram o Romance nas suas
escrituras: Lorca, Gedeão, Ary, Cecília Meireles, são exemplos disso.
Tal corrente ainda não foi quebrada. Quer por escritores de poesia, que
por repentistas populares que continuam a debitar as suas décimas com
mote. No Alentejo, no Minho, nas Beiras, nos Açores.
Trago-vos um modesto Romance e, nas próximas edições, seguirei por aqui.
romance I
(no mercado)
o filho está em
bordéus
“se fosse
surrealista
era
picasso” decerto
“dê licença que me
sente
agora que vou para
velho
fique sabendo o
amigo
não se esqueça do
que digo”
não me esqueço meu
amigo
1.11.2018

* imagem: detalhe de Les Demoiselles d'Avignon (1907) de Pablo Picasso
egipto
Afonso Dias

estive no Egipto, gostei e trouxe isto:
egipto
na rota do cairo
só os camelos
passam
pelo cu benzido da agulha
e
arrastam a cinza do deserto
rumo a mais
deserto
e a mais cinza
todavia
adivinha-se um fogo
na moleza da cáfila
e é perfeita a luz
devoto mahmadou
muçulmano bom
amigo farto
erguido em poucos dias
doou-me o sorriso
mais limpo que se pode
e há uma infusão de menta
a
santificar o entendimento
esgotada a pedincha
o preço é
revelado
e a perfeita serenidade
releva longínquas
reverências
a
navegar
secura
sobre os egípcios
empilham-se
gigantescas
as sombras
de pedra
de
submissão
e de martírio
com vales de
reis
e pirâmides
em mágica
maravilhosa
e absurda criação
uma massa de
anos e anos
e
séculos
e mortos
e ossos
e mortos
mais ossos
mais pedras
e sangue
e
mais pó
e oásis
que só há
muito
longe
e não se pode
quanta dor
transportou
nefertiti
e Cleópatra
até ao folclore
nas margens do corão
com mar vermelho
wind surf
e bikini
que as mulheres
dali
mal ousam
e muitas são
as mulheres que
recolhem
trejeitos e sorrisos
nas
vestes de noite
e menoridade
litúrgica
e sombria
- apenas se adivinha um vislumbre
de lágrimas -
divido-me entre
a beleza
plena e sublime
e o mar
vermelho de
dor
daquele deserto infindo
e ali à beira
a palestina
de
lágrimas acesas
a arábia de petróleo
meca
e esperança inerte
a síria sempre
mártir
em mar vermelho
de sangue
navegada
e israel a pairar
sob o “céu
cinzento”
da american navy
sempre em
riste
o sorriso limpo
de mahmadou
de doçura tanta
é esperança pouca
que
ele merecia ter
muita
e que eu não trouxe
porque não havia
21.7.2019
poesia aos molhos
Afonso Dias
“A propósito de certos meios que só aceitam uma poesia muito etérea, distante, metafísica. Com pessoas e ralações sociais é que nunca.”
poesia aos molhos
sigamos
pelo bom caminho
regurgitemos
eructemos
uma poesia de etiqueta
sossegadinha quieta
comportada no
cantinho
da poesia delicada
com’ássim
delicodoce
mimozinha e arrumada
de
bochechinha espremida
por dois dedos
ternurentos
e beijinhos gordurosos
dos
que se dão aos rebentos
amorosos
não queremos dona urraca
deixar que as
ralações
- as sociais qué’dizer -
nos
infectem a poesia
- a que já pegou de
estaca
nas tertúlias preciosas -
deixemo-la arredada
da carne mal amanhada
e com bactérias manhosas
já não sei
quem foi que disse
que as rosas senhor as
rosas
as do colo da rainha
e o amor
aos molhinhos
choroso e com rodriguinhos
é que se devem cantar
e mais as
cogitações
matafísicas e tal
quem sou
eu para duvidar
de tão sábia indiferença
afinal
então com vossa licença
venho já: vou só bolsar
4.6.2019

inventário
Afonso Dias
inventário
