Por Ondas do Mar de Vigo
Myriam Jubilot de Carvalho
Sorrow, my brother
Para o meu
irmão Vincent, dito van Gogh
A Arte é uma
paixão. Um fogo.
Quanto mais queima, mais florestas encontra
para consumir.
Não sei ciclones. Nem dilúvios, nem
tornados. Que apaguem um tal fogo.
A Arte não é um amor. A paixão da Arte
opõe-se a toda a paixão de amor.
A Arte é um risco. Um desafio. Uma Hybris.
Para os leigos, a Arte é a desmesura, a
loucura.
Para o Artista, a Arte é a sobrevivência,
a eternidade.
“Sorrow”
Quem entende a força
com que fizeste “Sorrow”?
Comprazem-se os leigos a medir o Artista com
seus curtos palmos. Não sabem que o Artista
não precisa de disfarces, nem de roupagens
estranhas, nem de gestos de espalhafato. A
dimensão da Arte passa despercebida ao
exterior.
Será a Arte uma Hybris? Não, que o
Artista não desafia os Deuses. O risco da
Arte está em desafiar os Homens – o Artista
desafia o homem, o cidadão
pragmaticus-economicus-politicus.
Que a voz do Artista é um pouco a voz dos
Deuses? Nem sempre... Mas pode ser um dos
dons com que os Deuses o brindam...
Entretanto, um dom que se paga caro. Muito
caro. O seu preço é o bisturi da lucidez –
sensibilidade, senso crítico, objectividade,
racionalidade, subjectividade – e uma
terrível humildade perante a única meta
possível, a Perfeição.
A Arte é o assumir de um acto constante de
coragem. É este o desafio ao pragmatismo:
Propõe-se ao homo
pragmaticus-economicus-politicus um
espelho de um cristal tão puro que ele possa
ver-se lá completamente reflectido. E é esse
o risco da Arte, o risco do Artista, pois o
homem pragmaticus não quer espelhos.
Assustam-no, as imagens nítidas. Então,
inveja, odeia quem as saiba construir.
É o homo pragmaticus-economicus, ou
politicus, quem faz guerra ao
Artista. E o acusa de desmesura. E lhe fala
pejorativamente de loucura.
É o homo pragmaticus quem tenta
reduzir o Artista à própria dimensão comum e
pragmática, aplicando-lhe a sua estreita
bitola. Para isso, exige-lhe, impõe-lhe, que
se torne comerciante.
O homem pragmaticus tem, no entanto,
os seus requintes – dá nomes pomposos ao
inominável. Diz então que o Artista é
acolhido pelo Comércio da Arte. Porque o
homem pragmaticus sabe, sabe-o bem
demais – que o Artista que vence, ainda em
vida, no Comércio da Arte, em muitos casos
se auto-destrói, se corrompe: o espelho
transmuta-se em cabotinismo.
O Artista não é só a palavra que se escolhe,
o traço que se desenha, o som que se
combina, a cor que se constrói, a forma que
se ergue. O artista é isso, sim, mas muito
mais. O Artista assume humildemente o
deslumbramento pela grandeza do Ser – a
grandeza DE ser. Por isso o homem
pragmaticus lhe chama narciso –
um outro insulto.
Porque a grandeza de ser – Humano – é um
reflexo, ou um elo, na grandeza universal, e
divina, do Uno.
Então, o Artista é um ser exigente. Não
encontrando com quem dialogar, tem de
conformar-se – ou confinar-se – ao seu
monólogo, à sua solidão. O Artista é um
eremita, um asceta.
Como elo da cadeia universal da Vida, o
Artista não se exprime para se opor a
ninguém. Exprime-se – porque sim. Porque
nasceu para erguer um marco, um padrão, que
fique, que permaneça sólido. Como um apelo,
como um aviso. Como um deleite.
– Mas que fique, sólido, a unir os
homens.
Na sua exigente solidão, o Artista é um ser
solidário.
Por tudo isto, provavelmente, pelo muito
mais que eu não alcance, fizeste – Sorrow,
fizeste Os Semeadores, os
Girassóis...
Porque trabalhavas “como o carvoeiro, todo
sujo, de manhã até à noite”.
Porém, para destruir o Artista há ainda
outros modos igualmente eficazes na sua
força destruidora, talvez ainda mais
destruidora que a assimilação pelo Comércio
da Arte – e que são processos simples, e
silenciosos.
Um deles, é forçar o Artista ao exílio, às
várias mortes do emigrante – castra-lhe a
voz.
Um outro, é deixá-lo morrer à fome, e assim
ele se cale de uma vez por todas e para
sempre e não deixe rasto da sua passagem
pela miséria do mundo...
Se o mundo ficar mais pobre, quem se
inquieta? O homem pragmaticus só
entende de romances best-sellers...
Cabe aos ministérios da Cultura, caso
existam, olhar pelos Artistas que não
conseguiram integrar-se nos circuitos
correntes da vida comum.
Myriam Jubilot de Carvalho,
Agosto 2017
Imagem:
Old Man in Sorrow (On the Threshold of Eternity) (oil on canvas, 32x25-1/2 inches), belongs to the Kröller-Müller Museum in Otterlo, Netherlands.