
Contemplações
Francisco Gil
Washed Up: uma instalação ambiental
- Partilhar 1/03/2021
Um dos grandes
problemas ambientais no mundo é o excesso de
lixo que é produzido. Cada produto
industrial que se consome, vem acondicionado
numa embalagem que invariavelmente é
colocada no contentor do lixo ou abandonada
algures. Apesar de nos últimos anos ter
havido uma maior preocupação na reciclagem e
reutilização de determinados materiais, o
facto é que em muitos locais do mundo, o
lixo é ainda atirado para o chão, para os
rios e ribeiras, acabando no mar.
São conhecidas as
enormes ilhas de plástico e microplástico
que flutuam nos oceanos [nature.com].
A maior dessas ilhas, no Pacífico Norte, tem
uma superfície maior que as todas as ilhas
do Reino Unido. A gravidade da situação é
tal, que os milhares de toneladas de lixo
que formam estas impressionantes ilhas, são
apenas uma pequena parte do problema, já que
a maior parte do lixo existente nos oceanos
acumula-se debaixo de água. Se não houver
uma mudança na forma como tratamos o
ambiente, em breve haverá mais plásticos do
que peixes no mar.
Além do lixo que se
acumula longe do nosso olhar, há o lixo que
percorre milhares de quilómetros pelos
oceanos entre continentes e chega ao litoral
e praias de todo o mundo. São os mais
diversos objetos que dão à costa e que são
recolhidos pelos serviços de limpeza e
voluntários, de maneira a mostrar a todos
uma praia limpa de lixo visível.
Nos territórios
protegidos, reservas da biosfera, a beleza
natural é muitas vezes agredida com o lixo
internacional que é encontrado nas suas
praias. É o caso da reserva protegida de
Sian Ka'an, na costa caribenha do
México, património mundial da UNESCO e uma
das regiões do planeta com maior
biodiversidade. Em Sian Ka’an têm sido
encontradas embalagens de plástico de mais
de 50 países e territórios diferentes, como
refere Alejandro Durán, artista visual
mexicano, que usa o lixo que recolhe nas
praias para produzir as suas obras e alertar
para o problema do lixo nos oceanos.
Alejandro Durán,
ao visitar pela primeira vez a reserva de
Sian Ka’an em 2010, ficou impressionado com
a quantidade de lixo que se encontrava
espalhado na praia. Decidiu então recolher
o lixo com outros voluntários, organizá-lo
pelas diferentes cores e formatos e
fotografá-lo. Ao longo deste tempo tem
recolhido as mais diferentes embalagens das
mais diversas origens: potes de manteiga
do Haiti, garrafas de água da Jamaica,
embalagens de produtos de limpeza e de
beleza dos EUA, Coreia do Sul, Noruega,
escovas de dentes, brinquedos, talheres de
plástico, etc, etc.
Os seus primeiros
trabalhos realizados consistiram na
organização de grande parte do plástico
recolhido, sendo que a cor preponderante era o
azul. Ficou famoso o pequeno arranjo
enquadrado com o
céu e as águas azuis das Caraíbas: uma
obra efémera e ecológica.
Com o lixo
recolhido e organizado nas suas diferentes
cores, Alejandro, tem organizado diferentes
instalações, com um plano muito simples:
usar o lixo recolhido e reutilizá-lo em
diferentes instalações. O seu plano
passa também por envolver as comunidades neste seu
processo de arte ecológica.
Hoje, a sua intenção é simples: recolher o lixo, exaltá-lo, colocá-lo num pedestal e exibi-lo.
Ver mais: alejandro_duran_how_i_use_art_to_tackle_plastic_pollution_in_our_oceans
A educação artística na formação geral
- Partilhar 08/02/2021
A partir da segunda
metade do século XVIII, num período rico em
mudanças, como seja a revolução industrial, a
independência norte-americana, ou a queda da
monarquia em França, fez com que muitos dos
paradigmas vigentes se alterassem
radicalmente. No mundo das artes e da
expressão visual e plástica em particular,
essa rutura com o passado também ocorre
nesse período. As artes visuais estiveram durante
séculos condicionados, sob o conceito
limitado das habilidades mecânicas, num
mundo fechado e imutável. É com as mudanças que ocorreram
com as revoluções operadas pela
industrialização e pelo declínio progressivo
do antigo regime aristocrático que surgem
novas filosofias e doutrinas que mudarão os
sistemas de ensino na Europa. Em Portugal,
as mudanças político-sociais produzem não só
o nascimento do ensino público secular, mas
também abrem caminho a uma valorização das
chamadas artes mecânicas e, claro, à criação
de um sistema público de formação artística.
Será no século XX que
a educação artística se tornará uma área
fundamental nos currículos da Educação
Básica obrigatória. A mudança significativa
ao longo do processo de modernização
educativa surgiu com as novas interpretações
que as questões artísticas passaram a ter em
todo o sistema. A educação artística passa a
não se limitar apenas à formação específica
de artistas e torna-se uma área fundamental
na construção da pessoa humana.
Se no contexto
medieval, a formação de artistas é organizada
com base na relação mestre-aprendiz,
confinada à oficina e assente em pedagogias
alicerçadas na destreza manual e na manutenção
do gosto e valores estéticos clássicos. Com
o desenvolvimento industrial e mercantilista, a formação artística
irá quebrar os seus
compromissos com os interesses corporativos,
sai da oficina, e passa a ser realizada em
aulas públicas que gradualmente ganham
prestígio social, até serem integradas na
Universidade na segunda metade do século
XX. Todavia, quer no ensino artístico, quer
no ensino geral, as pedagogias conservadoras
irão manter durante muitos anos os aspetos
“académicos”, centrados nos resultados
finais, como intransponíveis na didática das artes
plásticas e visuais.
Com a queda progressiva do regime aristocrático que ocorreu no século XIX em Portugal, para além da implementação das aulas públicas para a formação de artistas, existe a progressiva integração da educação artística no domínio da educação formal. No início, a Educação Visual e Plástica nas escolas públicas, financiada pelo Estado, tinha funções claras: a aplicação da aprendizagem à formação profissional e à indústria. Será com as mais recentes teorias, enfatizando a Educação pela Arte e a Educação Estética, onde se destaca mais do que a criação, a criatividade, mais do que o artista, o homem, e mais do que o especialista, o cidadão, que a Educação e Expressão Visual e Plástica serão constituídas como áreas inclusivas de todo o sistema educativo.
* Uma aula tradicional numa escola primária no início do século XX.
A voragem violenta das ondas
Isto a propósito das incertezas quanto ao futuro dos negócios, dos projetos, da vida que tanto gostamos de ter devidamente programada e assegurada. Em tempos de crise, são os mais aptos os primeiros a tomarem a dianteira para se adaptarem às mudanças. Grandes ou pequenos, fortes ou fracos é na capacidade de adaptação que está a sobrevivência.
Os gritos de insatisfação perante as incertezas, ou ondas de indignação que agora se levantam devido à pandemia, fazem parte da natureza humana. Ainda bem que assim é. Quer dizer que não é fácil navegar em pequenas cascas de noz que à primeira vaga se viram e à segunda se afundam. Ter alguém que nos diga por onde ir e o que fazer, requer um menor gasto de energia, mas por outro lado retira-nos boa parte da liberdade e limita-nos as escolhas. A importância de ser dono e responsável pelas nossas decisões, coloca-nos diante das incertezas e vulneráveis perante o dinamismo dos contextos onde nos situamos.
Na atividade artística o que mais prevalece são as decisões individuais e a aptidão especial para quebrar regras. Os artistas, pela sua irreverência, estão situados nas margens da normalidade social e em tempos de constantes confinamentos e receios nos contactos físicos, a atividade cultural e artística é das que mais se tem retraído. Os mares por onde navegamos, são tortuosos para todos, mas nas pequenas cascas de noz há grande dificuldade em nos mantermos à tona. Há que se reinventar e encontrar novas estratégias para sobreviver. São tempos estranhos mas também de novas oportunidades.
Mais que exigir soluções à medida dos nossos pequenos umbigos, há que repensar estratégias e adaptarmo-nos aos novos contextos de uma forma mais abrangente, onde haja lugar para todos. Claro que o mundo é injusto. Pena que essa perceção de injustiça só venha à tona quando nos toca diretamente na pele. Porventura é por isso que as injustiças continuem a prevalecer. Enquanto estivermos apenas preocupados com a nossa pequena casca de noz, até no mar pacífico dificilmente encontraremos uma brisa de vento que nos permita chegar a um bom porto.
* «O elemento humano, insignificante e perdido, encontra-se irremediavelmente submetido à voragem violenta das ondas.», Naufrágio de um Cargueiro, 1810 [ Joseph Mallord William Turner ] - Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal
Uma cena na praia
John French Sloan
foi um pintor que se destacou a representar
a Nova Iorque de inícios do século XX.
Nascido e criado na Pensilvânia, EUA, onde
incentivado pela família estudou desenho e
pintura, desenvolveu com outros companheiros
um estilo neorrealista que marcou a arte
norte americana onde se destacam pinturas
representando a vida cosmopolita daquela que
mais tarde viria a ficar conhecida como a
Big Apple.
O seu trabalho em
Nova Iorque começou em 1904, tinha 33 anos.
Observava e representava a cidade numa
perspetiva realista, destacando quadros do
dia-a-dia nova iorquino. O importante eram
as pessoas e de como interagiram nos espaços
públicos. Nas suas obras destacam-se cenas
da rua, restaurantes, salões de beleza,
pátios, etc. capturando e interpretando a
essência da vida dos bairros de Nova Iorque.
South Beach é um
bairro de Nova Iorque, situado na costa
leste de Staten Island. Possui uma praia com
o mesmo nome. Quando Sloan a visitou pela
primeira vez em 1907 sabia que a mesma era
frequentada sobretudo por pessoas da classe
trabalhadora e não perdeu a oportunidade de
a retratar, no seu ambiente humano tão
característico.
A sua obra
South Beach Bathers (1908), representa
uma tarde na praia passada por pessoas
comuns: uma mulher em pé ajeita o cabelo no
chapéu enquanto interage com um grupo de
amigos num piquenique algo incomum, ao jeito
de
Le déjeuner sur l'herbe (Manet,
1863). Incomum porque no grupo de banhistas
devidamente equipados com os fatos de banho
da época, está um homem vestido como um
executivo saído do
escritório com um caranguejo na mão. É um
piquenique de cachorros quentes e
caranguejos pousados num pequeno lenço
estendido na areia. Não há talheres, não há
bebidas, é um piquenique bem estranho que
nos leva a pensar no ridículo da situação.
Ao contrário da
famosa
obra de
Manet
que pretendeu escandalizar a sociedade
conservadora parisiense de finais do século
XIX, esta obra de Sloan pela situação
ridícula representada, mostra-nos, talvez,
aquele que foi o piquenique mais exótico de
South Beach com caranguejo e cachorro
quente, numa amena tarde de verão.
A pintura, como a fotografia ou o cinema, permite montar quadros e cenas ao detalhe que são uma perfeita mentira, mas tão próximas da realidade que facilmente as aceitamos como verdadeiras. E o inverso também é real. Quando hoje vamos a uma praia e encontramos um grupo de amigos, uma família, usando máscaras cirúrgicas, diríamos mesmo que estamos diante de uma cena neorrealista, só imaginável na mente de um artista. Daí a beleza da arte: uma interpretação da realidade, uma mentira que é real.
* South Beach Bathers , [ John French Sloan ], 1907-1908, óleo sobre tela, 66,04 x 80,65 cm - Walker Art Center, Minneapolis, EUA
O Triunfo da Morte
Ao longo da história
da humanidade, foram registadas várias
epidemias provocadas por bactérias e vírus.
Uma das mais antigas, talvez seja a de
430-427 a.C. em Atenas na Grécia. Mas a mais
devastadora foi a chamada peste negra que no
século XIV matou aproximadamente 25
milhões de pessoas na Europa. * O Triunfo da Morte, [Pieter Bruegel, o Velho], 1562-1563, óleo sobre madeira, 117 x 162 cm - Museo del Prado, Madrid
Quando se fala dos
principais atores da história, nos livros,
na escola, no cinema ou na TV, o que vemos
são referências a grandes figuras masculinas
que terão influenciado a humanidade e a sua
história ao longo de séculos. Nesse grupo de
pessoas, destacam-se os cientistas, líderes
religiosos, militares, políticos e
filósofos. São poucos os artistas e poucas
as mulheres referenciadas. As artes, como as
entendemos hoje, com a sua forte componente
prática e manual, é tendencialmente
considerada uma atividade menos nobre que as
atividades predominantemente intelectuais. Sendo a nossa
sociedade, uma sociedade patriarcal baseada
fundamentalmente em valores
judaico-cristãos, onde o patriarca tinha sob
seu poder a mulher, filhos, escravos e
demais animais domésticos, não é de
estranhar que a história se faça no
masculino. O masculino visto como força
física e mental, poder, coragem,
agressividade, centrado na figura do homem
másculo e viril.
Não se estranhe
assim que predominem nos livros oficiais, os
homens como as grandes figuras da humanidade
e que mais influência tiveram na sua
história. Michael H. Hart em 1978 no livro
A Ranking of
the Most Influential Persons in History
apresentou uma classificação das pessoas
mais influentes da história e nenhuma delas
é uma mulher. Em Portugal, foi só
após a instauração de um regime liberal no
século XIX que foi possível uma mulher – em
1889 – concluir um curso superior na
universidade. Na questão do direito de voto,
só em 1911 uma mulher pôde votar em
Portugal, após requerimento para tribunal,
onde obteve sentença favorável. Na religião, nas
ciências e nas artes, os livros estão cheios
de nomes masculinos que fazem parte do nosso
imaginário na liderança e nas vanguardas. As
mulheres dificilmente tiveram um espaço de
destaque na história antiga da humanidade. Nas artes plásticas,
em Portugal, e no período anterior à
revolução liberal do século XIX, conseguimos
encontrar um nome feminino: Josefa de
Óbidos, a pintora do século XVII que se
especializou nas naturezas mortas e que foi
uma rara exceção à regra, quebrando muitos
dos cânones de uma sociedade conservadora,
ao estabelecer-se profissionalmente como
pintora. Foi só no século XX, que viriam a
destacar-se outros nomes como Aurélia de
Sousa (1866-1922), Vieira da Silva
(1908-1992), Menez (1926-1995), Maluda
(1934-1999), Paula Rego (1935) e Graça
Morais (1948), entre outras. Recentemente
temos assistido ao grande impacto mediático
de Joana Vasconcelos cuja obra assenta na
apropriação, descontextualização e subversão
de objetos pré-existentes e realidades do
quotidiano. Nos tempos atuais,
devido à globalização e à maior abertura
social e cultural da nossa sociedade, outras
mulheres têm desenvolvido atividade
artística na área plástica e visual,
revelando grande capacidade criativa e
particular sensibilidade estética. Um dos casos mais
interessantes é o de Susana Piteira, que tem
trabalhado sobretudo a pedra, com
intervenções sobre o território, seja rural
ou urbano. Um dos aspetos mais salientes na
sua obra, é a profundidade na definição das
formas, onde o objeto artístico ganha uma
forte dimensão poética, revelando
interessantes cumplicidades com o meio onde
se inserem. É neste contexto, de
diversidade e igualdade de oportunidades,
que é estimulante olhar o mundo e os outros
– na sua singularidade – e valorizar a
expressão livre e a intervenção nos
diferentes contextos, sem preconceitos nem
amarras. A
educação garante a apropriação colectiva dos
instrumentos do conhecimento, o
desenvolvimento de competências de autonomia
de aprendizagem, sentido crítico e criativo
e a participação cidadã. No século XIX quando
se pretendeu criar uma escola pública para
todos os moços e meninos (1), muitas vozes
se insurgiram, perguntando o que seria deste
país se toda a gente soubesse ler, escrever
e contar. Quem iria lavrar as terras? Quem
iria plantar as batatas? Nessa altura, no
tempo dos reis e das rainhas, mais de 75 por
cento da população portuguesa não sabia ler
nem escrever. Os ofícios aprendiam-se
sobretudo com familiares. Desse modo, a
criação de escolas primárias no país em todo
o século XX, serviu para dar às crianças,
não só a instrução – os conhecimentos, mas
também uma educação para o desenvolvimento
de competências. Depois, surgiram as escolas
comerciais e industriais e o ensino superior
politécnico, visando a formação de
profissionais nas diferentes áreas. Nas
artes visuais, criaram-se as escolas de belas artes
de Lisboa e do Porto, onde se ingressava com
uns 14 anos de idade e cujo ensino tinha como
princípio a sua aplicação à indústria. Como em outras áreas
do conhecimento, na vertente da educação
visual e artística – que é um âmbito
privilegiado para a contemplação, reflexão e
intervenção crítica – o que se continua a
fazer no ensino básico, embora por vezes não
pareça porque há algumas e boas exceções, é
continuar com os processos educativos do
passado, porque foi com esse modelo que a
maioria dos professores aprendeu. Nas últimas décadas,
sobretudo nos meios académicos, coloca-se em
causa os modelos únicos de
ensino-aprendizagem na educação visual,
centrados em conteúdos e técnicas e, onde
mais que educar e formar cidadãos autónomos
e interventivos, se continua a promover um
ensino muito vinculado ao antigo sistema
produtivo segundo pseudo-orientações
superiores. O que importa hoje,
nas escolas públicas do ensino básico, é que
se fomente uma educação artística para a
compreensão crítica da cultura visual e não
para o ensino de técnicas e performances do
passado. Esse é um desafio evidente quando
se analisa alguns horários e currículos das
escolas de 1.º ciclo e 2.º ciclo que de
interdisciplinaridade e flexibilidade
curricular têm muito pouco. Nesse aspeto, o
mais preocupante talvez seja o
conservadorismo e persistência dos modelos
antigos por parte de alguns pais e
educadores que continuam a ver a escola como
uma escola do século passado: uma escola
onde se preparam as crianças para a
resolução de fichas, testes e exames.
Então o que temos?
– Temos uma escola que educa para a
competição aguerrida, com classificações
para tudo e para todos e que em lugar de
integrar, promove a exclusão e rejeita a
diversidade.
(1)
António Aleixo, poeta
popular dizia que a senhora rica teve um
menino, e a pobre pariu um moço.
Segundo os
dicionários e enciclopédias, o conceito de
Arte é uma atividade humana ligada a
manifestações de ordem estética. Diz
respeito ao que se considera ser uma
criação dos humanos, quando são aplicados os
saberes e o domínio teórico e prático na
produção de artefactos – escultura, pintura,
música, etc, para serem admirados e fruídos. Os artistas,
criadores de arte, são os autores de algo
novo, original, que se destaca de outros
trabalhos, pela excelência das técnicas
utilizadas e pela criatividade demonstrada
em relação ao comum e usual. O adjetivo
criador – aquele que cria, que inventa algo
novo – tanto aproxima o/a artista de Deus ou
dos Deuses (os criadores de todo o
universo), como ao mesmo tempo reduz a sua
criação a um patamar inferior em relação à
obra natural. Por exemplo, a representação
de uma árvore em desenho, pintura ou
escultura, pode ser considerada uma obra de
arte pela complexidade das técnicas
utilizadas ou pela originalidade da sua
representação. No entanto, o elemento
natural representado, por ser uma “criação”
da natureza, é a obra original, é o modelo
primordial. Este é o entendimento clássico
da obra artística na representação da
natureza: uma mera cópia da criação divina. Em contraste com
o antropocentrismo dominante,
sensibilizados pela proteção da natureza e
pela sustentabilidade, assistimos hoje, à
fruição e contemplação da criação natural
como se de uma exposição artística se
tratasse. Em muitas regiões com paisagens
naturais protegidas, existem percursos e
itinerários para uma aproximação e
valorização dos espaços naturais e de outros
olhares para a natureza não humanizada. No planalto do
Colorado, situado no continente americano, a
oeste das Montanhas Rochosas, existem
algumas das mais impressionantes obras
naturais formadas pela erosão. A ação do
tempo: as chuvas, os ventos, as variações de
temperatura formaram ao longo de milhares de
anos paisagens naturais que impressionam,
não só pela dimensão, mas sobretudo pelos
detalhes, pela originalidade e diferença com
outras formações mais ou menos comuns do
espaço natural. É por isso que grande número
de visitantes se deslocam todos os anos aos
famosos parques naturais americanos situados
no planalto, como o Antelope Canyon, Bryce
Canyon, Grand Canyon, Zion, entre outros. No Utah, perto de
Moab no Arches National Park, existe um arco
natural em arenito vermelho com
aproximadamente 15 metros de altura e com
uma forma tão interessante, que passou a ser
um dos símbolos do próprio estado do Utah.
Conhecido como Arco Delicado (Delicate
Arch) é, de facto, uma autêntica maravilha da
escultura geológica. Para se chegar ao arco
há que fazer um percurso de alguns
quilómetros por uma área árida, numa
exigente caminhada, o que torna ainda mais
gratificante o encontro com o arco natural. Têm-nos ensinado,
ao longo do nosso percurso de vida, a
apreciar e fruir as mais variadas criações
humanas, mas o prazer e fruição que se sente
no contacto com obras naturais, fazem-nos
refletir sobre a própria dimensão humana. O
deslumbramento que muitos visitantes sentem
e exprimem perante as paisagens naturais,
são o reflexo de uma progressiva mudança de
paradigma, onde se começa a valorizar cada
vez mais o todo a que pertencemos e a urgente necessidade
de se defender o património natural, um bem comum de todos e para todos. (2019-09-13)
Cinco artistas em Sintra é uma obra de 1855 da autoria de Cristino da Silva (1829-1877) que regista um país conservador, desigual, em confronto com os novos paradigmas socioeconómicos do século XIX após a chamada revolução liberal.
Na atividade artística, a norma antiga ditava que o mestre e os seus discípulos trabalhassem na oficina com base na observação
de modelos à luz da vela e cópia e adaptação de gravuras. Os trabalhos, na maior parte das vezes elaborados por um coletivo, não eram assinados já que o sistema de mercado e de autor não estava instituído. A oficina de um mestre pintor, com os seus assistentes e aprendizes, era uma fábrica de peças, um centro de mão de obra para todo o tipo de pinturas e arranjos estéticos. Até 1834 o funcionamento das oficinas, dos artistas e de todos os ofícios manuais era regulado por um grémio — uma ordem profissional — que ditava quem podia ou não podia exercer a profissão. Com a instauração de um regime liberal, o grémio — chamado de Bandeira de São Jorge — foi suprimido, criaram-se as Academias de Belas Artes em 1836 e passou, em parte, a ser mais livre o exercício artístico em Portugal.
A pintura de Cristino da Silva, integrada no romantismo português, revela os novos conceitos da atividade artística
no país, que abandonava pouco a pouco as premissas antigas. Neste retrato pintado, vemos os artistas no exterior da oficina no registo de observação da natureza. Vemos a sua cara, a sua assinatura. A pintura romântica, transmitia uma visão melancólica do mundo, acentuando o egocentrismo e a valorização dos contextos locais, em oposição aos registos anteriores que evidenciavam o formalismo na composição e as temáticas históricas e mitológicas, como reflexo do racionalismo dominante.
A valorização do trabalho artístico e do artista como pessoa é destacado nesta obra, onde é evidente a clivagem social entre os personagens representados. Por um lado, os cinco artistas em destaque e reconhecíveis* que olham no sentido do observador da tela e ostentam uma indumentária urbana, por outro, as figuras populares, anónimas — os chamados saloios das zonas rurais de Lisboa — que observam o trabalho artístico: um velho, uma mulher, um jovem, e três crianças.
Esta visão social, com uma evidente assimetria entre o urbano e o rural, onde uns posam para o retrato pintado como figuras principais e os outros fazem apenas parte da paisagem, resulta de uma construção social secular que promove a desigualdade. É neste contexto de rejeição ao passado, que ao longo de todo o século XX surgiram grandes mudanças sociais como a emancipação feminina, quando as mulheres reivindicaram direitos jurídicos iguais aos homens, ou a educação universal, como direito de todos e de todas.
As melhorias em infraestruturas que surgiram em Portugal no século XIX após a chamada revolução liberal, chegaram, como se sabe, bastante atrasadas em relação ao que já acontecia noutros países europeus. As primeiras estradas de terra batida (pelo método McAdam) são deste período, onde se demorava umas 34 horas de Lisboa ao Porto numa carruagem puxada por duas parelhas de cavalos. Os primeiros liceus criados em cada uma das capitais de distrito, começaram a ser instalados a partir de 1836, sendo que em Faro só foi criado por decreto em 1851.
A nova visão do mundo preconizada no século XIX, permitiu abrir novas portas para um
novo contexto social que se desenvolveria posteriormente de forma abrupta e descontrolada. Hoje, no rescaldo de tantas mudanças, necessitamos ainda rever os desequilíbrios sociais e naturais que as diferentes formas de liberalismo não resolveram e que de certa forma acentuaram e continuam a acentuar. *
Cinco artistas em Sintra, de Cristino da Silva (1855). Os cinco artistas são Tomás da Anunciação, em primeiro plano, Francisco Metrass, seguido de Victor Bastos, Cristino da Silva, e José Rodrigues, sentado no chão
. (2019-07-29) Quase todas as atividades humanas resultam em eventos sociais. Eventos sociais onde as pessoas combinam encontrar-se. Não há muitos anos, um estudo concluía que a motivação principal para as pessoas se deslocarem a um festival musical, a uma feira, ou a outra qualquer festa popular, não era especificamente apreciar a atuação artística de alguém em especial, mas sim, conviver com os seus amigos, com a sua família. Outro dia, um jornal televisivo fazia uma reportagem num dos muitos festivais de verão que se realizam por aí, perguntando a uma jovem qual a sua opinião sobre a performance de um conhecido artista musical, a que a jovem respondeu, não ter conhecimento sobre esse momento específico. Afinal, a sua presença no dito festival, servia apenas para passar bons momentos num acampamento em interação com os seus amigos. Estar com os pares, pessoas que partilham interesses idênticos, é uma das necessidades principais de todos nós. Como hoje somos muitos, mas mesmo muitos, mais que no tempo das descobertas, é natural que hoje, 600 e tal anos depois, existam mais feiras medievais, que na dita Idade Média e, por conseguinte, mais encontros e interações. Como nos festivais de verão, festas, feiras e quejandos que quase todos os dias são noticiados, também os eventos menos populares, mais dirigidos a determinados grupos sociais, têm como principal propósito criar as condições favoráveis ao encontro de pessoas. É por isso que o momento mais alto de uma exposição ou do lançamento de um artefacto cultural, é a sua inauguração, o encontro e a partilha. É o momento em que as pessoas se encontram para cumprimentar os artistas, para apreciar a sua obra e, sobretudo, para se encontrarem, para se verem e serem vistas. Em Faro, há um belíssimo teatro, o Teatro Lethes, em cuja organização arquitetónica interior, há um aspeto delicioso: nas primeiras frisas junto ao palco, é mais fácil admirar a plateia e quem nela está sentado, do que propriamente o palco. Disse-me um amigo, que a posição das referidas frisas era estratégica: servia sobretudo para que determinadas pessoas da sociedade farense de então, pudessem também ver e ser vistas pelos outros em momentos culturais importantes. É por isso que os acepipes (comidas e bebidas), são tão importantes nos eventos culturais e interações sociais. É ao redor do alimento que melhor se convive, tornando os eventos, quase todos os eventos, momentos sublimes por natureza, onde podemos demonstrar o que há de melhor em nós próprios: cumprimentar e ser cumprimentado, a pertença ao grupo, o nosso bom gosto e a particularidade da linha estética com que nos apresentamos aos nossos pares. * Imagem do filme “Pollock” de Ed Harris: “Opening Peggy Guggenheim´s Art of This Century Gallery”. (2019-07-02) Obras que se auto destroem ou que foram criadas para serem destruídas, instalações ou exposições de obras com discutível valor estético. Parece que este passou a ser o novo paradigma das artes visuais nos últimos anos. É certo que na antiguidade o conceito de arte era substancialmente diferente. Arte, para os antigos, dizia respeito às atividades dos nobres, sobretudo à atividade intelectual. Com a modernidade, iniciada com a chamada revolução industrial, o conceito alargou-se e começou a incorporar não só os valores estéticos, mas também outros valores, como os de mercado. O conceito de beleza e de obra de arte, amplamente difundido em praticamente todos os manuais escolares, que repetem ano após ano as mesmas imagens, dão-nos a ilusão que a arte e os valores estéticos das suas obras se situam inevitavelmente entre Leonardo da Vinci e Salvador Dalí. Isto é, a Arte para a cultura ocidental tem sido sobretudo a produção de objetos para serem admirados e o próprio ato de contemplação. O urinol de Duchamp, exposto hoje na Tate Modern em Londres – uma réplica de 1964 de um original comprado pelo artista numa loja de material de construção em 1917 e enviado para uma exposição em Nova Iorque que o rejeitou – marca, talvez, o início do conceito de que é mais importante a ideia da obra do que o labor do artista na sua criação. O próprio Platão, há mais de 2300 anos, também considerava que pintores e escultores se limitavam a copiar a natureza. A natureza, ela sim – para Platão – é
a verdadeira obra, o resultado do ato sublime dos deuses que a idealizaram. Quando recentemente uma obra de Banksy se auto destrói após ser leiloada, o que nos quer dizer? Uma ação de marketing devidamente orquestrada? A contestação aos princípios do mercado? A valorização da ideia em oposição à contemplação do objeto? Certo é que as vanguardas artísticas cada vez mais se afastam dos conceitos de arte, quer como objetos ditos “belos” para serem contemplados, quer como de objetos ditos “valiosos” para serem vendidos e comprados. Hoje, cada vez mais, Arte é forma de expressão e como forma de expressão a Arte é comunicação e é tudo. Se no século XIX expropriaram e retiraram obras das igrejas e palácios para os museus, se no século XX se começaram a produzir obras para galerias comerciais, parece que todo esse paradigma se reconstrói, sem limites. Provavelmente hoje, as manifestações artísticas são uma habilidade, um jeito de comunicar, de contestar e, sobretudo, uma forma de alimentar os egos nesta sociedade consumista. (2019-06-11)
A
peste negra foi provocada pela bactéria
"Yersinia pestis", comum nos ratos e
transmitida aos humanos pela pulga desses
animais contaminados. A proliferação rápida
da peste deveu-se às más condições das
habitações sem sistema de saneamento básico,
reduzidos ou inexistentes hábitos de higiene
corporal e a existência muito elevada de
roedores nas cidades e casas, o que
facilitou a disseminação das pulgas e da
bactéria causadora da peste. A peste atingiu
tudo e todos, quer nas cidades como nos
campos, embora nas cidades, pela maior
aglomeração de pessoas, tenha sido mais
devastadora.
A morte, que de tempos
em tempos assolava as cidades através de
microrganismos invisíveis ao olho humano,
fazia emergir o medo e o desespero, não por
se ter chegado ao termo de uma jornada
dignamente cumprida, mas por um desconhecido
desígnio de antecipação de uma travessia
difícil para um outro "lugar" em que a
maioria não estava preparada.
A obra
O Triunfo da Morte de Pieter
Bruegel, o Velho, realizada entre 1562-1563,
simboliza os vícios mundanos sendo esmagados
pela morte, representada aqui por um enorme
exército de esqueletos. A devastação atinge
indiscriminadamente as várias classes
sociais. Como pano de fundo, uma paisagem
destruída pelas chamas sob um céu negro,
representando um mundo em "apocalipse", onde
árvores carbonizadas são decepadas pela
morte. Na linha do horizonte, barcos em
chamas afundando-se. À frente, em primeiro
plano, vemos a morte varrendo o espaço
outrora humanizado. O rei, nos seus últimos
momentos de vida, abandona o seu tesouro e a
morte, cavalgando com a sua gadanha, conduz
os vivos sem qualquer esperança de salvação,
para uma grande urna funerária.
Pieter Bruegel, o Velho, pintor da Flandres
da segunda metade do século XVI apesar de
ter viajado pela península itálica e ser um
artista do renascimento, manteve sempre a
sua ligação à cultura popular medieval,
desenvolvendo um mundo fantástico e
visionário tal como Hieronymus Bosch. Esta
representação
— O Triunfo da Morte, se bem que pode estar
vinculada às guerras entre católicos e
protestantes ocorrida no seio do Sacro
Império Romano Germânico no século XVI,
conduz-nos também às imagens da morte
generalizada,
provocada pelas epidemias recorrentes da
Idade Média. Hoje,
sabe-se que a proliferação de bactérias e
vírus se dá sobretudo pela
mobilidade e proximidade de
pessoas em espaços reduzidos. A obra de Bruegel no
contexto atual de globalização e de grandes
metrópoles superpovoadas é um alerta para a
necessidade de mudança de paradigma em
relação ao nosso modo de vida no meio
natural a que pertencemos.
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