Margarida Vale

Os novos medievais

Margarida Vale

A vida sabe como se reinventar

É comum que se pense nos desejos para o novo ano que se avizinha. Cada volta ao sol, os conhecidos 365 dias, são sempre desafios que não páram de pregar rasteiras e espalhar lamas escorregadias. Os planos, aquilo que o ser humano tem por hábito delinear, podem não ser concretizados e, como tal, há que fazer um reforço para que os mesmos cheguem a bom porto.

Para o ano que se finda, o terrível 2021, certamente que a saúde terá sido o tema mais badalado, a palavra que se usou de forma quase gratuita e sem qualquer sentido válido. É que em nome dessa mesma saúde, a real e a tal, a verdadeira, foi relegada para um segundo plano. Milhares de consultas foram adiadas e, arrisco a escrever, milhões de exames médicos não chegaram a ser realizados, colocando em risco a vida de quem deles precisava.

Pode parecer um paradoxo mas é mais uma forma aligeirada de se olhar para o caos que se instalou por todo o lado. Certamente que estão recordados das medidas que foram exaradas para contenção de uma suposta pandemia que teve o condão de alterar a vida de muitos para pior. Quantos perderam os seus empregos, o ganha pão, o sustento da vida, para que a saúde colectiva fosse preservada? Esses não importam? Os que tudo continuaram a ter, de forma bem tranquila, não fazem ideia da luta pela sobrevivência que se agigantou.

É assim a nossa sociedade, uns são filhos e outros enteados e gostam muito de dizer coisas sem saberem. Certas e determinadas medidas chegaram a tocar o dantesco mas o povo é sereno e não se importa de ser enganado. Basta relembrar que há um ano fazer compras vulgares, uma simples ida ao supermercado, era quase uma aventura. Horários reduzidos, gentes bem acumuladas e exaustão de funcionários, aqueles que nunca pararam e de quem as autoridades nem se lembraram. Tudo em nome da contemção da pandemia.

O ensino foi uma verdadeira palhaçada com idas e vindas, com computadores e professores que se esforçaram para chegar aos alunos e outros que apenas se remeteram ao conforto do lar e se esqueceram das suas obrigações. Não havendo qualquer penalização, o melhor era mesmo deixar andar que nem se notava. Alguns alunos agradeceram muito, outros viram a sua vida parada já que a aprendizagem ficou para segundo plano. A função não se cumpriu e o mal continua sem cura à vista.

Os transportes foram reduzidos em horários e espaço mas quem trabalha e deles precisa, não foi visto como alguém que corria riscos pois a terciarização da sociedade permite que se fale sem saber, que se queixe sem motivo e que se chore sem lágrimas verdadeiras. O essencial continuou como de costume mas esses continuam a ser invisíveis pois o pão chega à mesa de quem o pode comprar, sem fazer a menor ideia do percurso até ao repasto.

Os centros de saúde ganharam estatuto mais elevado, de casas vazias, votadas os abandono pois o medo, essa coisa estranha, cheias de pernas, feia e com dentes de fora, entranhou-se em tantos que se esqueceram de viver. Foram esses medos, receios e outras palavras que permitiram que os seus velhos morressem sem o último abraço, sem a palavra de conforto e sem saberem que eram amados. Que curiosa forma de demonstrar que se gosta de alguém.

Encerraram-se as pessoas numa prisão dourada, cheia de coisinhas boas e foi ver os corpos a ganharem formas mais distintas e roliças, com rabos que se colavam a sofás fofos e convidativos, para assistirem a séries onde os heróis são capazes de tudo mas os que as viam, se ouvirem um tom de voz mais elevado, soltam as lágrimas, dizem que têm sentimentos e fecham-se em cascas de noz para não verem a luz do dia. Enfraquecem-se as pessoas e não sabem como resolver situações básicas.

Quem fez aconteceu não se podia dar ao luxo de confinamento. Imaginemos que quem varre as ruas ficava em teletrabalho. Como seria? Quem fazia o pão pegava no computador, dava as instruções e voilá! pimbas! estava feito? As prateleiras dos supermercados não se arrumaram sozinhas nem os campos fizeram brotar os produtos sem as mãos sábias das pessoas que os cuidam. É fácil falar quando não se sabe como é. Aliás, até é caso para ser aplaudido pois os que são iguais precisam de dirigentes que sejam a sua luz.

Podemos falar de tantas crianças que perdem a noção das expressões, não sabem o que as mesmas significam por as caras estarem tapadas com máscaras que escondem os sentimentos e as emoções. Que vida é esta? É isto que desejam para os filhos? Não saber interpretar o que o outro pretende transmitir? Ficar espoliado de sentir é hediondo e não há forma de recuperação.

Como se ensinam os mais novos, aqueles que entram no primeiro ciclo se não for em regime presencial? Quem lhes pega nas mãos e encaminha o lápis para que as letras fiquem direitas? Como se pode mostrar o exercício de contar quando há uma máquina que os afasta? Onde reside a sensibilidade se não se toca em cada um, para mostrar que se importa e se gosta?

Que dizer dos que ficaram com a vida arruinada, os que perderam os seus postos de trabalho e que dificilmente os irão recuperar? A cultura ficou em segundo plano mas essa não se vê a não ser que algumas vozes liguem os interruptores da revolta. Fecham-se salas de espectáculos e prometem-se ajudas que nunca aconteceram. Quando não se valoriza o que é nosso, a raiz de sermos como somos, então a identidade perde-se e não mais encontra o caminho certo.

Afinal qual é a ideia que está por trás de tantas restrições e falta de liberdade? Um enorme dogma, que é aceite de cabeça baixa e sem contestar. Há quem bata palmas de tanta verborreia e disparates, escudando-se da vida como se fosse algo pernicioso. Viver é um risco assumido e sem a aventura de acordar todos os dias, o interesse e o desafio seriam minimizados, pelo facto de se ser um autómato que apenas responde aos comandos recebidos.

E a saga continua com variantes que apenas mudam de nome. Quem se chega à frente para trabalhar, esses malandros da sociedade, ficam com as pernas cortadas e não se fala mais do assunto. O dinheiro não brota do céu nem da terra, apesar de muitos terem essa sensação de facilidade distributiva. Tem o nome de ignorância mas há quem goste de assim viver mesmo que lhes seja explicado como funciona o sistema.

A nova estrela amarela sofreu um refreshment e passou a ser electrónica. Há que se provar que se é dos escolhidos ou dos que seguem a doutrina sem contestar. Exibe-se a falta de tanto e ainda mais com orgulho. Limita-se a vida de quem não se quer ligar a radicalismos mas vê-se forçado a ter que seguir os carreiros que empurram para formigueiros estranhos.

Surge a poção mágica, aquela que vai dar a força descomunal e que irá permitir que se derrotem os inimigos, ou apenas um inimigo, cantando vitória de cabeça erguida. Há filas para que a toma seja eficaz e benéfica. Uns atropelam-se e querem ser os primeiros e outros nem querem saber do assunto. Há de tudo neste mundo que é de todos o que o habitam.

Estragam-se as reuniões familiares e arruinam-se as festas particulares em nome de quê? Perde-se o contacto com a realidade e a loucura toma conta de quem ainda acredita que o Pai Natal desce pela chaminé e vai entregar os presentes a quem se portou bem durante o ano. Afastam-se gentes de quem se gostava e os afectos passam a ser perniciosos e maléficos. Gasta-se a humanidade que ainda restava em cada um.

A questão que se coloca agora é bem pertinente: Valeu a pena? Deixaram os avós morrer sem amor, encafuaram as pessoas em espaços minúsculos e apertados, cancelaram situações essenciais, reduziram-se as mentes que estão a crescer e insiste-se que é para um bem comum. Que ano tão estranho.

É este o futuro que se deseja, um medo abissal que engole todos como se fosse um vacúolo louco? Onde fica a vida, a aventura constante, o desafio que tem que ser superado? E os amores, que lhes fazer? A linha entre o amor e o ódio é ténue, mas a que fica entre a sanidade mental e a loucura é ainda mais fina.

Feliz ano de 2022. Viva a vida!