Margarida Vale

Os novos medievais

Margarida Vale


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Os primeiros monges do Ocidente

Bento, um nobre italiano que vivia como se fosse um eremita na zona de Roma, funda a Abadia de Monte Cassino, no ano de 529. Como tal necessitava de normas que fossem aplicadas aos seus seguidores e, em 530, redige a regra fundamental da ordem beneditina: a Regra de S. Bento.

Na verdade Bento já tinha uma vida de solidão e meditação que o levara a olhar para os céus de modo especial. Apesar da inexistência de qualquer vida monástica, ele vivia em recolhimento e foi assim que a sua mente se moldou para um coletivo que iria mudar a vida de muitos e mudar a forma de estar religiosa.

Assim, nasce um estaleiro, o mais antigo de todos os mosteiros da Europa. Enquanto as obras decorriam a sua mente acelerava e queria chegar a um documento que pudesse ser a norma de todos os que seguissem a mesma ordem. Foi assim que nasceu um extenso e bem elaborado regulamento que estipulava as normas de convívio e de trabalho para todos os monges.

Um monge não se dedica apenas à oração e ao trabalho, precisa de estar sempre bem ocupado e com a certeza de que o que está a fazer é correto. A ociosidade é inimiga da alma e assim os ditos monges devem dedicar-se aos trabalhos manuais e à leitura das escrituras divinas. Só assim será a sua função certa.

O mosteiro estava dividido em várias partes e a vida acontecia nesse mesmo local sem necessidade de ajudas externas. Seriam auto suficientes e produtores. Além das celas onde pernoitavam, a biblioteca seria um lugar de primordial importância. Apesar de nem todos os monges saberem ler e escrever, os livros foram um tesouro que nos chegou até hoje.

Os monges copistas, escolhidos de forma especial, tinham a tarefa de copiar os livros que já existiam e outros completavam a obra com os desenhos e as iluminuras. Verdadeiras obras de arte que eram repartidas entre muitos trabalhadores aplicados. Um livro era um verdadeiro tesouro que demorava muito tempo a ser elaborado.

Outros dedicavam-se às oficinas, construindo o que fosse preciso, criando ferramentas que seriam usadas igualmente na agricultura pois o mosteiro possuía uma farta horta que alimentava toda a congregação e ainda permitia excedentes.

O moinho era essencial para que os grãos ficassem reduzidos a farinha e das mãos dos irmãos, palavra encontrada para se identificarem os que acreditavam no mesmo, saíam os alimentos que mantinham o corpo são e a mente desperta para a realidade.

O jardim permitia passeios que levavam à meditação e à prática do exercício físico. Eram monges mas, ao mesmo tempo, homens que sentiam no corpo os abusos alimentares e o pecado da gula. O lazer também era aproveitado para benefício da coletividade.

"Da quarta até à sexta hora devem ocupar-se da leitura. A partir da sexta hora depois de se levantarem da mesa, devem repousar no leito em perfeito silêncio, ou se quiserem ler não devem incomodar nenhum dos outros... Se a necessidade ou a pobreza assim o exigirem, devem ocupar-se das colheitas..."

Os monges beneditinos desempenharam um papel decisivo na história da civilização ocidental. Encerrados no scriptorium, conseguiram a proeza de salvar do desaparecimento muitas obras de literatura da antiguidade. Só assim foi possível chegar até hoje esses pensamentos e ensinamentos antigos.

Situadas fora das cidades, as casas beneditinas tiveram uma função primordial na difusão da organização e da cultura bem como terem prestado os ensinamentos básicos para que a ordem social viesse, mais tarde, a ser o motor da revolução. Para estes homens, todos os outros eram merecedores do perdão e da salvação.

A regra coloca um abade à cabeça de cada mosteiro, que é eleito pela comunidade. Este deve amar os seus monges como se fossem seus filhos e tudo fazer para ser amado pelos mesmos. Contudo o caráter humano que este homem dá à dita regra, fará dele uma fonte de piedade e de misericórdia.

Bento pode ser considerado o pai da Europa, o fundador do ideal europeu, o que unifica e revitaliza os tempos e os homens. A sua inovação é o sustentáculo da igreja medieval primitiva e rompe com a forma intransigente que existia buscando o equilíbrio há muito buscado.

O ensino nas abadias beneditinas, nos períodos mais complexos e agitados onde a guerra ganhava terreno, era o único sistema de formação de homens cultos que se preparavam para as novas formas de governo e para os tempos de grandes mudanças. O certo é que em pleno século XXI, ainda está viva em muitos mosteiros espalhados pelo mundo.

Foi o inovador, o homem que sentiu o apelo e a necessidade de mudar o rumo das vidas que andam perdidas, alinhar as almas que esvoaçavam desorientadas e lhes encontrar um propósito. As vidas tinham um valor alto e deviam ter uma missão específica. Bento abriu portas e caminhos que ainda hoje são percorridos.

Nos nossos tempos a vida é bem diferente. Apesar de existirem regras, que não a deste visionário, os seres que habitam por estas localidades são todos diferentes e com ideias próprias onde as interpretações são múltiplas. Contudo há sempre quem as quebre ou seja contra as mesmas. Faz parte duma sociedade que evolui.

Os tempos em que vivemos são estranhos e confusos. As novas trevas tomaram conta da vida quotidiana e os cegos que conseguem ver, deixam-se levar como se estivessem acorrentados a uma grade invisível onde os pregos servem de suporte. Picam-se como se fosse coisa boa, sangram sem que a cor se veja e aceitam tudo o que lhes dizem.

Servidão humana. Aceita-se que se quebrem todas as lutas, que se rasguem as conquistas de anos e anos de progresso que afinal não surtiram o efeito que os nossos tão honrados antepassados, aqueles que deram o corpo às balas, pretendiam. Para onde foi a liberdade que tanto custou a conquistar?

Agora a religião é outra, passa a ser a sobrevivência, a do salve-se quem puder e nada mais interessa. Os valores esgotaram-se, escorregaram por entre os dedos e tornaram-se apenas ideias dum passado que não interessa recordar. O ser humano, aos poucos, vai-se desumanizando e perdendo o saber ser pessoa. Vai ficando uma réstia de algo que foi grandioso.

Não aceitar opiniões diferentes, atacar que nem um leão quem o contestar e a educação, a das regras sociais e de etiqueta, caiu por terra e foi espezinhada por todos. Saltam as ameaças, o palavrão, a ausência de carácter e a baixeza que enfeita os convencidos. Ai de quem tente provar o seu ponto de vista que a falta de tolerância, a cegueira mental é tão forte que tolda as mentes fracas que se deixam levar em rebanhos de tudo e de coisa nenhuma.

A liberdade de viver está condicionada e os que mais dedos apontam são aqueles que, em tempos que já não se recordam, queriam que as amarras fossem quebradas, que o proibir fosse proibido e que a vida era um bem maior. Os tempos são de mudanças mas querer ficar amarrado por querer apenas deve ser se for por amor.

A regra que nos regula hoje está bem distinta da de S. Bento. A auto suficiência perdeu-se, a meditação é de outro teor, a leitura passou a ter conotação negativa, as hortas são dos rurais e o ensinar, passar a mensagem para as gerações vindouras, é um cabo dos trabalhos, ou das tormentas, que as tempestades continuam a assolar.