Memórias do Futuro
Fábio d'Abadia de Sousa
Memórias de um menino que vivia num bordel
Meus três tios heróis
Dizem que toda família tem pelo menos um
indivíduo que destoa completamente, em
termos de personalidade e comportamento, dos
outros membros do clã. Esta pessoa, como
todos sabem, é chamada preconceituosamente
de “ovelha negra”, termo considerado
politicamente incorretíssimo no Brasil de
hoje. Perdoem-me, mas ainda recorro a ele
por falta de expressão que explique melhor o
que quero dizer. Pelo o que eu sei, minha
mãe teve seis outros irmãos, quatro rapazes
e duas garotas. Entre os sete irmãos não
havia uma “ovelha negra”, mas cinco delas. E
parece-me que quem liderava o rebanho dos
“desgarrados” era a minha mãe. Dois dos sete
irmãos dela se casaram e foram ter aquilo
que se chama de “vida normal”. Não os
mencionarei mais, pois tive pouquíssimo
contato com eles. Além disso, “vida normal”
não me interessa! Tenho que mencionar, é
claro, a quinta “ovelha negra” da família, a
irmã caçula da minha mãe, que não conheci e
cujo nome nunca soube (pois as pessoas se
referiam a ela apenas pelo apelido de
“Nenê”), e que faleceu em frente ao bordel
de Dona Tonica, em Anápolis (GO), atropelada
por um caminhão. A morte trágica e prematura
da irmã era apenas uma das grandes dores que
acompanhavam minha mãe. Empurrada pela
miséria, “Nenê” também se tornou prostituta
e seguiu os passos da irmã mais velha.
Quando se referia à irmã caçula, minha mãe,
além do pesar, quase sempre demonstrava
também um pouco de culpa pelo o que
aconteceu com a caçulinha adorada por ela.
A
solidão e a falta de apoio familiar de minha
mãe só eram amenizadas pelo grande carinho
de três dos seus irmãos: Manuel (Mané),
Sebastião (Bastião) e Valdomiro (Domiro).
Este trio, sempre que tinha uma folga no
trabalho árduo da lavoura, fazia questão de
visitar minha mãe. Juntos e com algumas
garrafas de cerveja e cachaça, eles formavam
uma família que tentava se divertir e ser
feliz, independentemente das críticas e dos
olhares de desprezo do restante do clã!
Constatar a forte ligação dos quatro é
importante para entender o que viria a
acontecer com Vicente. Para os três rapazes,
as surras aplicadas por Vicente contra a
minha mãe era algo inadmissível! Mesmo que
não tenham sido julgados e condenados pelo
assassinato de Vicente, os meus três tios
não saíram impunes. A vida não os deixou sem
nenhuma sentença condenatória! E nem àqueles
que conviviam com eles.
Depois do assassinato de Vicente, a
decadência da minha família se acelerou
consideravelmente. É fato que ninguém
conhecia a prosperidade na nossa família,
mas o nível de miséria cresceu tanto que
a falta de comida se tornou algo freqüente.
Dormir com fome quase virou regra, inclusive
para mim. Faltava tudo em casa, menos a
cachaça. Como eu nunca bebi cachaça, dormia
de barriga vazia mesmo! Minha mãe e seus
irmãos, que antes se embriagavam nos finais
de semana, passaram a ficar bêbados de
segunda a segunda. Meus tios nem se davam ao
trabalho de voltar para casa, um humilde
barraco abandonado, sem água encanada e sem
energia elétrica, que eles invadiram na
periferia da pequena cidade de Leopoldo de
Bulhões (GO). Eles passavam a maior parte do
tempo acampados na principal praça da
cidade, em frente à maior igreja local e, é
claro, em frente ao bares onde compravam o
veneno que os matavam em doses: a pinga.
Mas
nem sempre foi assim, os irmãos de minha mãe
eram lavradores recatados, dignos, honestos,
equilibrados e que sobreviviam capinando,
roçando, fertilizando, colhendo e ensacando
café em fazendas dos municípios de Leopoldo
de Bulhões e Silvânia (GO). Com enxadas,
foices e machados, eles trabalhavam desde
que eram meninos bem pequenos, pois quase
sempre acompanhavam o pai deles, o meu avó
Otávio, na árdua missão de tirar alimentos
da mãe Terra. Eram lavradores esforçados.
Para mim, foram e ainda são heróis.
Eles jamais foram à escola. Pobre não
ia à escola no Brasil dos anos 40 e 50,
época em que meus tios eram crianças e
adolescentes. A miséria do País era bem
distribuída para eles. Roupas, tinham
pouquíssimas! Poucos dentes sobreviviam em
suas bocas. Eram arrancados sempre que
doíam! No entanto, eles pareciam felizes.
Quando juntos, estavam sempre sorrindo e
falando piadas engraçadas, mesmo sob o sol
escaldante, enquanto capinavam lavouras ao
longo da vida. Eu e minha mãe, às vezes,
os acompanhávamos na lavoura, como na
colheita e na fertilização de cafezais.
Odiava vê-los bêbados! Mas hoje entendo!
Bebiam para suportar a vida difícil que
tinham. Trabalhavam, trabalhavam, mas mal
ganhavam para comer e vestir com decência.
Bebiam, bebiam porque queriam, apesar
de tudo, estar sempre felizes! Eles jamais
cortariam seus pulsos! Não eram covardes!
Aceitavam a vida do jeito que ela se
apresentava: cruel, implacável e injusta,
muito injusta! Lembro um dia em que o dono
de uma fazenda e seus capangas os
perseguiram, armados com espingardas, para
impedir que eles fossem embora de uma
propriedade onde trabalharam três meses sem
receber nenhum salário. Foram obrigados a
trabalhar até o final da colheita de café
sem ganhar nada em troca, exceto uma comida
que parecia mais uma ração para porcos.
Infelizmente, os resquícios da escravidão
contiuaram e ainda permanecem hoje, em plena
década de 20 do século XXI, no Brasil.
Sim,
meus tios mataram o Vicente, mas, acima de
tudo, mataram suas consciências tranqüilas!
Depois da morte de Vicente, suas vidas
miseráveis perderam a tranqüilidade, o único
bálsamo que ainda lhes restava na alma. Eles
mataram o Vicente, mas jamais os verei como
assassinos! Eles mataram o Vicente, mas
acima de tudo, mataram a si mesmos! Se
mataram em vida: a pior das mortes! Eles
mataram também um pouco do meu grande amor
por eles! Mas eu jamais os condenarei! Eles
já tiveram a pior das condenações: nasceram
na parte mais miserável de um País muito
rico e totalmente injusto! Quem sou eu para
julgá-los! Dos meu três tios heróis, tento
guardar suas tagarelices, suas piadas e suas
tentativas desesperadas de serem felizes!
Eles foram um pouco do pai que nunca tive!
Eles foram um pouco da família que nunca
tive! Eles são um pouco da lembrança de que
uma família apóia uns aos outros! Eles
mataram o Vicente para apoiar a minha mãe!
Mas acho que ela foi quem mais morreu!
A vida é assim: estranha e cheia de paradoxos inconciliáveis! Mas uma grande lição meus tios me deixaram: a vida não é para ser questionada, pois jamais haverá respostas satisfatórias! A vida é para simplesmente ser vivida! Embriagado ou não! Miserável ou não (há vidas não miseráveis?)! E se eu não me embriago, como eles, o problema é meu! Talvez eu apenas sofra um pouco mais!
- n.17 • outubro 2020