Breves Notas
Aníbal de Sousa
A Máquina de Chilrear
- Partilhar 01/12/2022
Completa-se em
2022 um século sobre a conceção de um dos
mais fascinantes quadros de toda a História
da Arte: A Máquina de Chilrear. Seria
necessário recorrer à mais refinada e
erudita écfrase para dar uma ideia razoável
sobre esta maravilha da pintura universal. O
quadro pode ser visto no Museu de Arte
Moderna de Nova Iorque (Mrs. John D.
Rockefeller Jr. Purchase Fund.), mas com um
bocado de sorte podem ver-se reproduções
mais ou menos aceitáveis em manuais avulsos
da especialidade.
Trata-se de uma
engrenagem de elementos finos dotados de uma
manivela, com um arame helicoidal sobre o
qual poisam pássaros, ou só os bicos deles,
numa postura que nos permite quase ouvi-los
chilrear. A manivela está projetada numa
reta que parece prender-se na parede e se
apoia num suporte vertical. Na base uma mesa
baixa, transparente, irradia uma claridade
rosa que contrasta com o fundo azul
deslumbrado e manso, só perturbado, no topo,
por outra explosão de rosa de um lado e
escura do outro. Tudo bordejado por uma
moldura de um verde denso, amistoso e doce.
Podia talvez atribui-se ao quadro uma
matriz infantilista, ou primitivista, se não
fosse a profunda emoção, a musicalidade, a
poesia, que dele brota. Também se lhe podia
atribuir um estilo mecanicista, industrial,
mas é tal a ternura e a ingenuidade que
irradia, que isso não faria sentido algum.
O seu autor, Paul Klee, nasceu em 18 de
Dezembro de 1879, em Munchenburchsee, na
Suiça, mas recebeu a nacionalidade alemã por
parte de seu pai. Sua mãe era suiça e ele
sempre desejou adquirir essa nacionalidade.
Faleceu em 29 de Junho de 1940, em
Locarno-Muralto, sofrendo de uma terrível
doença da pele, quando estava prestes a
conseguir esse objetivo.
O quadro foi
gerado quando o artista era também professor
na celebrada escola vanguardista de arte e
arquitetura, Bauhaus, ainda em Weimer, antes
dessa prodigiosa instituição ser transferida
para Dessau e Berlin, para ser extinta em
1933 pelos nazis.
Klee conheceu e
privou com todas as escolas, tendências e
movimentações artísticas do seu tempo, mas
não aderiu formalmente a nenhuma. Esteve
presente na primeira exposição oficial
surrealista, organizada em Novembro de 1925,
na galeria Pierre (Loeb), na rue des
Beaux-Arts, em Paris, com Arp, De Chirico,
Ernst, Masson, Miró, Picasso, Man Ray e
Pierre Roy[i]
. Conheceu e participou no movimento Blaue
Reiter, com Kubin, Macke, Kandinsky,
relacionou-se com Dada e tinha grande
admiração por Van Gogh.
Mas Klee
sempre prosseguiu a sua linha autónoma, de
pintor, poeta e músico, só por si reflexo da
História da Arte da primeira metade do
século XX.
Havia uma tradição musical
na sua família e ele mesmo recebeu uma
sólida formação, tendo sido um notável
violinista. Talvez por isso os seus quadros
parecem irradiar melodias: doces cantatas,
árias e fugas de Bach.
Em 1912
completa a ilustração do romance Cândido
ou o Otimismo de Voltaire.[ii]
Em 1916, Paul Klee é incorporado no
exército alemão. Nesse mesmo ano realiza-se
na galeria Der Sturm, em Berlin, uma
exposição onde, pela primeira vez, ele
assume ter vendido bem os seus trabalhos.
Tinha realizado, em 1914, uma proveitosa
viagem à Tunísia, onde conheceu as glórias
da luz daquela terra, o que o levou a
profundas experiências e estudos sobre a
cor. “ (…) eu e a cor somos uma só coisa.
Agora sou pintor.” – disse ele na altura.[iii]
Em 1937 recebe a visita de Kandinsky e
Picasso em Berna. Nesse ano, em 19 de Julho,
realizou-se na Hofgarten, em Munique, a
degradante e tristemente célebre exposição
da Arte Degenerada, onde se exibiram
17 quadros seus, num total de 650
confiscados de 23 museus alemães. Hitler
expropriou trabalhos de impressionistas,
cubistas, fauvistas, expressionistas,
surrealistas, dadaistas e de outros
modernistas que considerava degenerados e
decadentes, para mostrar aos arianos
nazis a glória da arte oficial do Terceiro
Reich, neoclássica e naturalista. Por esse
tempo faziam-se fogueiras nas ruas onde se
queimavam os livros proibidos.
Em 15
de Setembro de 1906, Paul Klee casa com Lily
Stumpf, uma pianista que conheceu meia dúzia
de anos antes num serão musical. Casam em
Berna, mas mudam-se depois para um bairro
periférico de Munique. Vivem num pequeno
apartamento de três divisões. Lily dá aulas
de piano e Paul faz a lida da casa e trata
do filho.
Numa vida de 60 anos, Klee,
músico, poeta e pintor, teórico da pintura,
sempre presente na crista dos movimentos
intelectuais e artísticos do seu tempo,
nunca parou de criar. Contam-se no seu
catálogo mais de 9.000 títulos.
[iv]
[i]
ABCedário do Surrealismo,
Edição Portuguesa
da Reborn, 2001 Flamarion, Paris,
p.20.
[ii]
Génios da Pintura, nº 42,
Klee, 1963, Abril Cultural SA, São
Paulo, Brasil, p.56
[iii]
Idem, p.59.
[iv]
Partsch, Susana, Paul Klee
– 1879-1940, Taschen – Público.
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- n.43 • dezembro 2022