Aníbal de Sousa

Breves Notas

Aníbal de Sousa

A Máquina de Chilrear

Completa-se em 2022 um século sobre a conceção de um dos mais fascinantes quadros de toda a História da Arte: A Máquina de Chilrear. Seria necessário recorrer à mais refinada e erudita écfrase para dar uma ideia razoável sobre esta maravilha da pintura universal. O quadro pode ser visto no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (Mrs. John D. Rockefeller Jr. Purchase Fund.), mas com um bocado de sorte podem ver-se reproduções mais ou menos aceitáveis em manuais avulsos da especialidade.

Trata-se de uma engrenagem de elementos finos dotados de uma manivela, com um arame helicoidal sobre o qual poisam pássaros, ou só os bicos deles, numa postura que nos permite quase ouvi-los chilrear. A manivela está projetada numa reta que parece prender-se na parede e se apoia num suporte vertical. Na base uma mesa baixa, transparente, irradia uma claridade rosa que contrasta com o fundo azul deslumbrado e manso, só perturbado, no topo, por outra explosão de rosa de um lado e escura do outro. Tudo bordejado por uma moldura de um verde denso, amistoso e doce.

Podia talvez atribui-se ao quadro uma matriz infantilista, ou primitivista, se não fosse a profunda emoção, a musicalidade, a poesia, que dele brota. Também se lhe podia atribuir um estilo mecanicista, industrial, mas é tal a ternura e a ingenuidade que irradia, que isso não faria sentido algum.

O seu autor, Paul Klee, nasceu em 18 de Dezembro de 1879, em Munchenburchsee, na Suiça, mas recebeu a nacionalidade alemã por parte de seu pai. Sua mãe era suiça e ele sempre desejou adquirir essa nacionalidade. Faleceu em 29 de Junho de 1940, em Locarno-Muralto, sofrendo de uma terrível doença da pele, quando estava prestes a conseguir esse objetivo.

O quadro foi gerado quando o artista era também professor na celebrada escola vanguardista de arte e arquitetura, Bauhaus, ainda em Weimer, antes dessa prodigiosa instituição ser transferida para Dessau e Berlin, para ser extinta em 1933 pelos nazis.

Klee conheceu e privou com todas as escolas, tendências e movimentações artísticas do seu tempo, mas não aderiu formalmente a nenhuma. Esteve presente na primeira exposição oficial surrealista, organizada em Novembro de 1925, na galeria Pierre (Loeb), na rue des Beaux-Arts, em Paris, com Arp, De Chirico, Ernst, Masson, Miró, Picasso, Man Ray e Pierre Roy[i] . Conheceu e participou no movimento Blaue Reiter, com Kubin, Macke, Kandinsky, relacionou-se com Dada e tinha grande admiração por Van Gogh.

Mas Klee sempre prosseguiu a sua linha autónoma, de pintor, poeta e músico, só por si reflexo da História da Arte da primeira metade do século XX.

Havia uma tradição musical na sua família e ele mesmo recebeu uma sólida formação, tendo sido um notável violinista. Talvez por isso os seus quadros parecem irradiar melodias: doces cantatas, árias e fugas de Bach.

Em 1912 completa a ilustração do romance Cândido ou o Otimismo de Voltaire.[ii]

Em 1916, Paul Klee é incorporado no exército alemão. Nesse mesmo ano realiza-se na galeria Der Sturm, em Berlin, uma exposição onde, pela primeira vez, ele assume ter vendido bem os seus trabalhos. Tinha realizado, em 1914, uma proveitosa viagem à Tunísia, onde conheceu as glórias da luz daquela terra, o que o levou a profundas experiências e estudos sobre a cor. “ (…) eu e a cor somos uma só coisa. Agora sou pintor.” – disse ele na altura.[iii]

Em 1937 recebe a visita de Kandinsky e Picasso em Berna. Nesse ano, em 19 de Julho, realizou-se na Hofgarten, em Munique, a degradante e tristemente célebre exposição da Arte Degenerada, onde se exibiram 17 quadros seus, num total de 650 confiscados de 23 museus alemães. Hitler expropriou trabalhos de impressionistas, cubistas, fauvistas, expressionistas, surrealistas, dadaistas e de outros modernistas que considerava degenerados e decadentes, para mostrar aos arianos nazis a glória da arte oficial do Terceiro Reich, neoclássica e naturalista. Por esse tempo faziam-se fogueiras nas ruas onde se queimavam os livros proibidos.

Em 15 de Setembro de 1906, Paul Klee casa com Lily Stumpf, uma pianista que conheceu meia dúzia de anos antes num serão musical. Casam em Berna, mas mudam-se depois para um bairro periférico de Munique. Vivem num pequeno apartamento de três divisões. Lily dá aulas de piano e Paul faz a lida da casa e trata do filho.

Numa vida de 60 anos, Klee, músico, poeta e pintor, teórico da pintura, sempre presente na crista dos movimentos intelectuais e artísticos do seu tempo, nunca parou de criar. Contam-se no seu catálogo mais de 9.000 títulos. [iv]



[i] ABCedário do Surrealismo, Edição Portuguesa da Reborn, 2001 Flamarion, Paris, p.20.

[ii] Génios da Pintura, nº 42, Klee, 1963, Abril Cultural SA, São Paulo, Brasil, p.56

[iii] Idem, p.59.

[iv] Partsch, Susana, Paul Klee – 1879-1940, Taschen – Público. 2004 TASCHEN GmbH