Aníbal de Sousa
Atalaia,Círios e Caramelos*
I – Em fins do
século XIX, a popularidade da Atalaia e suas
festas, sobretudo em Lisboa e arredores,
justificava que Eça de Queiroz, no seu livro
A
Relíquia[1],
o demonstrasse, referindo-se ao dia em que é
solenizada Santa Basilissa, juntamente com
Santo Hipácio: “(…)
nesse dia festivo de
Agosto em que embarcam os círios para a
Atalaia.”
Esta expressão, assim aligeirada e
fluente, destinava-se, sem dúvida, à
compreensão geral e imediata: toda a gente
devia saber de que embarque, de que círios e
de que Atalaia se tratava.
Bem
entendido que Eça de Queiroz não pretende
com A Relíquia fazer ciência
teológica ou análise social. Com esse livro,
ele desenrola a matriz satírica e saborosa
que o torna inconfundível e faz de si um dos
grandes da língua portuguesa.
Não
obstante, pelas páginas de A Relíquia
circulam sotainas e auréolas sem conta: o
padre Rufino da Conceição, o odioso Negrão;
há um padre copta, frades e peregrinos
diversos, sacristães gordos; D.ª Maria do
Patrocínio e seu interminável terço; um
arquidiácono grego, romeiros russos,
carmelitas, franciscanos; o cónego Pita, o
bispo de Chorazin. E, como cenário de fundo,
à parte um ou outro endereço menos
recomendável, há sempre o túmulo de Raquel,
a Via Dolorosa, o Vale Cédron ou o Monte das
Oliveiras, quando não as igrejas do Loreto,
da Graça, das Albertas, das Flamengas, da
Pena, do Rato, da Sé, o Sinalzinho da Cruz,
Nossa Senhora das Dores, a Missa de Santana,
o Mosteiro, oratórios, o Seminário de São
José, ou os inefáveis frasquinhos com água
do Jordão.
São, de facto, sarcásticas
caricaturas que a verve de Eça ainda ironiza
mais apresentando-as como “manto
diáfano da fantasia”
cobrindo “a
nudez forte da verdade”.
Mas, com ou sem fantasia, com ou sem
sátira, A Relíquia assenta numa
conjuntura elaborada sobre alguns
fortíssimos argumentos de cariz religioso: a
peregrinação à Terra Santa; a veneração do
Santo Lenho e outras relíquias sagradas; as
promessas e os vínculos religiosos; a
penitência e a expiação.
Não admira,
portanto, que Eça de Queiroz tenha usado a
referência aos Círios da Atalaia como uma
espécie de código de acesso ao entendimento
pleno de toda a ação e de toda a trama em
que ele vai envolver as suas personagens.
II – Como Eça de Queiroz,
reconheçamos também os Círios como elementos
fulcrais das Festas da Atalaia e estas como
manifestações de base religiosa, assentes na
tradição de longínquas promessas coletivas[2]
e antiquíssimos ritos.
O facto de os
festejos assumirem aspetos “patuscos”,
com a “turba”
sempre pronta para “rir
e folgar (…) na algazarra, no ruído das
gaitas de foles e dos bombos”,
e depois “estende-se
regaladamente nas sombras e dá começo aos
seus repastos”[3];
o facto, ainda, de os Círios assumirem o
aspeto de uma “verdadeira
religião sem clero”[4],
e de, nas suas práticas, obedecerem a uma
liturgia própria, não autoriza a que se
negue a sua fundamentação profunda e
genuinamente religiosa[5].
Dizem os Padres Redentoristas de
Guimarães: “Ao
fazer um voto ou uma promessa, o crente, no
próprio momento em que pede a Deus uma graça
ou um favor, obriga-se a demonstrar-Lhe de
maneira especial, a sua gratidão por meio da
dádiva ou do sacrifício de acção de graças
que se compromete a oferecer (…).”[6]
E, assim como “Cristo
cumpre as escrituras e o desígnio salvador
de Deus subindo a Jerusalém”,
também, antes e depois dessa subida, os
homens, perseguindo a essência divina,
peregrinaram e peregrinam a Meca, Benares ou
Fátima, Atalaia ou Nazaré, buscando “a
esperança escatológica do Reino messiânico
(…) o lugar de reunião de tribos e nações.”[7]
E Atalaia é mais do que uma peregrinação
ou de que uma qualquer romaria.
“Um
círio” –
diz-nos Moisés Espírito Santo – “distingue-se
radicalmente da peregrinação ou da romaria
pelo compromisso que lhe está subjacente. As
peregrinações respeitam os compromissos
individuais, os círios dizem respeito a uma
‘promessa
colectiva’ que a comunidade teria
assumido no passado com o titular do
Santuário; o conceito de ‘promessa
colectiva’,
a que se ligam os bodos primaveris e o culto
do Espírito Santo, é uma expressão religiosa
semita. A promessa colectiva tem de ser paga
pela povoação como entidade colectiva como
um todo, ou por uma confraria em seu nome
(…) O que confere representatividade ao
grupo que se desloca ao local é um pendão
(…) O pendão é um atestado de presença, uma
credencial.”[8],[9]
As origens
dos círios poderão, então, radicar na
tradição oriental transportada pelas
expedições dos Fenícios – os Cananeus da
Bíblia – misturando outras tradições mais
remotas e incorporando expressões
posteriores, fruto, muitas vezes, das
alterações sociais e tecnológicas.
José Miranda, residente na Jardia (Montijo)
e um dos mentores da Sociedade do Círio Novo
do Alto Estanqueiro, resume assim a sua
postura pragmática face a este assunto: “A
gente só consegue manter a tradição, se nos
formos adaptando à evolução.”
III – Tal como correntemente se
escreve, a palavra círio deriva do latim
cereus
e associa-se à ideia de uma grande vela de
cera que, por sua vez, é invenção atribuída
aos Etruscos. Porém, a origem do uso do
círio deve procurar-se na antiga lei
judaica. A prática de se acenderem lâmpadas
e círios em pleno dia existia no Templo de
Jerusalém.
É o testemunho de São
Jerónimo[10]
que nos confirma que nas primitivas igrejas
cristãs, durante os quatro primeiros
séculos, não havia o costume de se acenderem
círios em pleno dia. Se, porém, isso
acontecia nas igrejas do oriente era por
razões misteriosas e alegóricas.
Moisés Espírito Santo, sustentando a tese da
origem semítica e oriental da “religião
popular portuguesa”, propõe a grafia “sírio”
(com “s”), por associação aos “prantos
sírios”.[11]
É curioso notar que na Atalaia há uma placa
onde se pode ler “Sírio Azoia”, na casa
respetiva.
IV – Enquanto, no
século XIX e na primeira metade do século
XX, afluíam a Atalaia muitos Círios de
Lisboa e da margem norte do Tejo e de zonas
tão diversas como Cabrela, Canha, Arrentela,
Coina, Azeitão, Palmela, Seixal, Cacilhas,
Samora Correia, etc.[12],
à data deste escrito eram notados na festa
do último domingo de agosto, apenas os de
Azóia, Quinta do Anjo, Carregueira, Olhos de
Água e Círio Novo do Alto Estanqueiro,
citados por ordem de precedência.
É
possível, porém, que reminiscências de
outros Círios, embora já sem pendões,
continuem a comparecer na Atalaia, quer no
último domingo de Agosto, quer na Quinta
Feira de Ascensão, ou em qualquer outro dia.
Também no Domingo de Páscoa comparece na
Atalaia o Círio dos Marítimos de Alcochete.
A afluência de pessoas parece maior de
ano para ano e os Círios continuam a
apetrechar-se e a melhorar as suas casas, os
seus equipamentos e respetivos objetos
rituais.
Acrescente-se que, dos
Círios acima citados[13],
apenas os de Carregueira, Olhos de Água e
Círio Novo, cumprem rituais autónomos,
embora com diferentes níveis de entendimento
de como deve ser cumprida a antiga promessa.
Ora esses três Círios representam povos da
área da freguesia de Pinhal Novo e limites
contíguos das áreas de Alto Estanqueiro,
Jardia, Moita, Quinta do Anjo e Palmela. Ou
seja, mais ou menos a principal zona de
implantação dos Caramelos, segundo Manuel
Cachado, citando Cabral Adão.[14]
V – Sobre os Caramelos, toda a gente
parece concordar com a ideia de que
existiram e existem, que os havia de
ficar
e de ir-e-vir,
que procedem da região de Tocha, Mira,
Cantanhede; que falam, vestem-se e
comportam-se de maneira peculiar; que teriam
vindo para o território que tem o Pinhal
Novo por epicentro, “atraídos
pelas vantagens oferecidas pelo rico
lavrador, o Sr. José Maria dos Santos (…).”[15],[16]
Mas, o que se pode verdadeiramente dizer
é que estas teses nunca foram eficazmente
demonstradas. Está por elaborar, entre
outros exercícios, um indispensável
levantamento sistemático de registos
paroquiais, um estudo comparativo de nomes e
apelidos e de vocabulário. E esse é um
trabalho que exige mobilização de meios e,
cada dia que passa, se torna mais difícil de
fazer. Por isso, é lícito suportar outras
teses, por mais estranhas que possam
parecer.
Que dizer, por exemplo, da
hipótese de os verdadeiros Caramelos serem
descendentes dos antigos mouros forros por
aqui ‘legalizados’ depois da Carta de
Alforria aos Mouros Forros de 1170?[17]
E que dizer da fabulosa tese do Senhor
de La Clède, segundo a qual os Caramelos
eram os antigos ‘barbáricos’, verdadeiros
piratas que se viram forçados a fixar-se no
interior da região de entre o Tejo e o Sado?[18]
O que é verdadeiramente interessante e
justificou uma comunicação ao Congresso
Internacional de Geografia, realizado em
Lisboa em 1949, é a forma dispersa como se
desenvolveu a colonização do território. “A
comparação do habitat no final do século XIX
e na actualidade (1942) mostra como a
dispersão ganhou terreno, com uma infinidade
de casas cobrindo uma área cada vez mais
vasta.”[19]
Luis Cabral Adão traça dos Caramelos
este retrato:”(…)
são, portanto, rudes,
por educação tradicional. Não há grande
afectividade adentro das famílias; e o que
mais admira, dada a sua procedência de
regiões devotas, é a perda quase completa do
seu espírito religioso. Não rezam, não vão à
missa, não baptisam os filhos, poucos casam
na igreja. Perderam-no por assimilação aos
naturais, que o não tinham.”[20]
É preciso compensar esta descrição
notando que a capela de Pinhal Novo apenas
ficou concluída em 1874, por iniciativa e
com o envolvimento de famílias caramelas e
que em 1833 já o Círio da Carregueira era
reconhecido na Atalaia.[21]
E será, portanto, o Círio que, para além
da sua fundamentação religiosa, vai cumprir
o papel catalisador de uma vasta população
tão peculiarmente dispersa. Com o Círio, as
pessoas vão encontrar-se e conhecer-se, e
posteriormente realizarão obras em conjunto,
mas guardarão por muito tempo os seus traços
originais, as suas raízes.
* Comunicação
apresentada ao Colóquio de Folclore do
Distrito de Setúbal, promovido pelo Rancho
Etnográfico de Danças e Cantares da Barra
Cheia, em 30-1-1993.
Esta comunicação foi
publicada de forma fracionada nos nºs 141,
142 e 143, de julho, agosto e setembro de
1993, respetivamente, do jornal Linha do
Sul.
[1]
QUEIROZ, Eça de, A Relíquia,
Edição Livros do Brasil,
Lisboa, p. 45.
[2]
Diz António de Matos Fortuna numa
Breve resenha acerca dos Círios do
Concelho de Palmela, (texto
dactilografado de fevereiro de
1986): ”Na
Idade Média, em época de difícil
identificação, em Portugal, mais
precisamente na zona actualmente
definida por Estremadura, os
participantes em determinadas
romarias (…) em vez de se deslocarem
isoladamente (…) formavam uma
espécie de confraria consagrada
expressamente à participação em tal
festividade, revestindo assim, um
aspecto comunitário local.”
[3]
Ilustração
Portuguesa,
5 de setembro de 1904. Nesta edição
publicam-se excelentes fotografias
mostrando diversos momentos da
Festa.
[4]ESPÍRITO
SANTO, Moisés, Origem Oriental da
Religião Popular Portuguesa,
edição Assírio & Alvim, 1988, p. 93.
[5]
É ainda António de Matos Fortuna, no
texto citado em nota 2, que diz: “Oriundos
de manifestações e sentimentos de
fé, criados, por vezes, em situações
aflitivas, os círios evoluíram num
sentido de laicismo, a pontos de
hoje o seu interesse se localizar
apenas no campo do folclore ou da
etnografia.”
Com este texto, pretendemos, além do
mais, contestar esta opinião.
[6]
Peregrinações e Promessas para quê?,
Padres Redentoristas de Guimarães,
Oficinas Gráficas da Livraria Cruz,
Braga, 1975, p. 13.
[7]
Idem, p. 5.
[8]
ESPÍRITO SANTO, Moisés, obra citada
em nota 4, pp. 92, 93.
[9]
A título de curiosidade diga-se qua
as Festas de São Pedro do Montijo,
chamavam-se antigamente Festas do
Espírito Santo de Aldegalega,
(Jornal O Domingo,
21-7-1901). Também ao local onde se
situa o Santuário de Nossa Senhora
da Atalaia se chamava Lugar do
Espírito Santo, (Moisés Espírito
Santo, obra citada em nota 4, p.
93).
[10]
Enciclopédia Universal Ilustrada
Europeo Americana,
tomo XIII, pp. 434-439. Este artigo
inclui uma extensa referência
bibliográfica, de onde São Jerónimo,
Migne, P.L., XXIII, 349.
[11]
Obra citada em nota 4, legendas das
fotos 69, 70, 71-73 e 92.
[12]
Portugal
Pitoresco e Ilustrado,
II A Estremadura Portugueza,
por Alberto Pimental, primeira
parte, O Ribatejo, p. 115;
COSTA, Manuel
Frederico Ribeiro da, Narrativa
Histórica da Imagem de Nossa Senhora
de Atalaia, Lisboa, 1887.
[13]
DIAS, Mário Balseiro, Palmela,
Aldeia Galega do Ribatejo e a
Romaria de Nossa Senhora da Atalaia,
História de Palmela ou Palmela na
História, Coleção Estudos Locais,
Câmara Municipal de Palmela, pp.
13-35. Aqui se apresenta um
importante contributo para o
conhecimento e compreensão destes
Círios e da questão atalaiana.
[14]
ADÃO, Luis Cabral, EBJP
(Estremadura, Boletim, Junta
Província Lisboa), nº 19,
Lisboa, 1948, p. 362.
CACHADO,
Manuel, Os Caramelos – contributo
para um estudo, História de
Palmela ou Palmela na História,
Coleção Estudos Locais, Câmara
Municipal de Palmela, p. 213.
[15]
LEAL, Pinho, Portugal Antigo e
Moderno, entrada Pinhal Novo.
[16]
Ainda sobre José Maria dos Santos
podemos ler, de Conceição Andrade
Martins, Opções Económicas e
influência política de uma família
burguesa oitocentista: o caso São
Romão e José Maria dos Santos,
Análise Social, Revista do
Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa, pp. 386,
387: “A
principal ‘obra’
da sua vida foi a colonização da
região do Pinhal Novo, que está
directamente ligada com o
estabelecimento de Rio Frio. (…)
Fixou cerca de 400 casais de ‘caramelos
beirões semi-nómadas’
numa área de 2.000 ha. de paul que
arroteou em glebas de 4 ha. e 6 ha.
e cedeu aos colonos mediante
contratos de arrendamento a longo
prazo (em vida) no valor de 1$000
por hectare.”
[17]
FLORES, Alexandre M. e NABAIS,
António J., Os Forais de Palmela,
Coleção Estudos Locais, Câmara
Municipal de Palmela, 1992.
[18]
N. de La Clède é um historiador
francês do século XVIII que em 1735
publicou em Paris uma Histoire
Génerale de Portugal, em 16
volumes, por provável incumbência de
D. João V, em apoio de ações
diplomáticas. Esta citação é feita
por Correia da Costa em artigo
intitulado A Estrada dos
Espanhóis, publicado no jornal
O Setubalense de 2-12-1961,
citando, por sua vez, o publicista
António Lopes Lourenço: “(…)
os primeiros habitantes da região
compreendida entre a Serra da
Arrábida e a Ribeira de Canha, foram
os barbáricos, cuja origem é
desconhecida. Os barbáricos eram
verdadeiros piratas que viviam
principalmente de roubos, e, durante
séculos, assaltaram as embarcações
que entravam ou saíam do Sado (…).
Obrigados a abandonar esse modo de
vida, pela formação dos centros
populacionais que se formaram tanto
no Sado (Setúbal) como no Tejo
(Almada, Alcochete, Barreiro, Aldeia
Galega) passaram a dedicar-se à
agricultura, formando assim o fundo
etnográfico da população que
presentemente é formada pelos
Caramelos. (…)
Os Caramelos
têm-se misturado com elementos de
várias origens (Alentejo e Norte
principalmente) de onde vem a
convicção de ser essa a sua origem
inicial, mas isto é um erro.”
Mais adiante,
diz ainda Correia da Costa, ser a ‘rústica
antecedência dos caramelos’,
“etrusca
ou proto-romana, mesclada com fundos
barbáricos ou nómadas.”
[19]
Les transformations de l’habitat et
des cultures dans la contrée de
Pinhal Novo (Portugal),
Orlando Ribeiro e J. Ribeiro Lisboa,
Comptes Rendues du Congrées
International de Geographie,
Lisbonne, 1949, Tome III –
Traveaux de la Section IV, Lisbonne
1951, pp. 328-334.
[20]
Vidé nota 14.
[21]
Vidé nota 12.
- n.42 • novembro 2022