Aníbal de Sousa
O Padre Pedro e a Professora Sara
- Partilhar 03/10/2022
Na primeira vez que me confessei,
senti que iria realizar uma experiência
iniciática, que me transformaria e me
colocaria a par de toda a gente que enchia a
igreja, conhecedor, também, daquele
mistério. Estava nervoso, mas decidido.
Quando me ajoelhei e encostei a cabeça à
grade do confessionário, ouvi uma voz, que
eu sabia ser a do padre Pedro, mas que me
parecia vir do Além inatingível. Era uma voz
segredada, bíblica, que me comandava e à
qual eu me entregava sem reservas. Repeti o
Ato de Contrição e logo me senti esmagado
pelo peso dos enormes pecados de que, só
naquele momento, tomava consciência plena de
ter cometido. «-Confessa os pecados que
cometeste por pensamentos, palavras e ações!»
E confessei que tinha chegado a casa depois
da hora que me fora estabelecida; que, sem
querer, partira a asa de uma terrina, e não
me tinha acusado; que durante a missa não
tirava os olhos de uma menina, a Gracinha,
que me fascinava; que tinha copiado uma
conta numa prova, na escola; que uma vez em
que me baixei para apanhar um lápis do chão,
vi as pernas e as cuequinhas azuis da
professora D. Sara; que mentira ao Jesuíno
Rochinha, dizendo-lhe que tinha no Algarve
uns avós muito ricos; que tinha achado o
abafador perdido pelo Costinha e não lho
devolvera; que tinha chamado nomes ao Luís
Henrique; que tinha roubado uns damascos do
quintal do Salvador Matias.
E talvez
não me tivesse calado nunca mais, se a voz
surdinada do confessionário não me tivesse
interrompido para me admoestar com
severidade e para me impor a penitência de
seis ave-marias e seis pai-nossos. Que me
arrependesse e não voltasse a pecar.
Quando saí da igreja, com a penitência
cumprida, senti-me leve, puro, bom. No dia
seguinte, rapazes e raparigas fariam a
primeira comunhão. Nós, com laços alvíssimos
no braço; elas, todas de branco e com
grandes véus de tule presos na cabeça com
singelas coroas de flores.
Foi outro
momento de grande exaltação, aquele em que
recebi solenemente a Hóstia Consagrada.
Senti um frémito purificante que me deixou
pronto para franquear as portas do Paraíso.
Durante algum tempo essas sensações
místicas foram-se mantendo e mesmo
aprofundando, por exemplo, quando por vezes
me era pedido que fizesse a leitura da
Epístola. Nessas alturas sentia-me instruído
por celestiais anélitos.
Mas o
contacto mais próximo com as cerimónias
religiosas e com os objetos do culto -
cálice, patena, sacrário, píxide, custódia,
turíbulo - e com estolas, casulas, alvas e
amictos, e com o ambiente da sacristia, foi
pouco a pouco embaciando aos meus olhos o
brilho luminoso das encenações litúrgicas. E
também a vida, que corria célere, todos os
dias me confrontava com novas dúvidas e
interrogações. E, com o andar dos tempos,
passei a sentir um grande desconforto com as
missas, a sacristia, as procissões. E passei
mesmo a chegar tarde e a faltar às
eucaristias dominicais, e deixei de me
ajoelhar no confessionário, onde havia já
muita matéria que eu omitia, por não
acreditar que pudesse ser pecaminosa.
In Cerro Alto, inéd.
- n.41 • outubro 2022