Margarida Vale

Os novos medievais

Margarida Vale

Joana, a Louca

Fernando de Aragão e Isabel de Castela fizeram de Espanha uma potência destinada a desempenhar um papel fundamental nos anos vindouros. Pelo casamento, conforme costume da época, realizaram a união de duas grandes coroas ibéricas. Completaram a Reconquista contra os muçulmanos, impuseram ao país um catolicismo austero com uma feroz perseguição aos judeus.

É nesta época que a viagem de Cristovão Colombo se realiza, já que Isabel o soube ouvir e acreditar. Esta descoberta, de uma América que se ansiava, será o prelúdio da constituição de um novo Império, o hispânico no Novo Mundo.

No reinado de Joana e no de seu filho, Carlos V, durante três décadas, os conquistadores espanhóis criaram uma nova forma de viver. Providos de cavalos e de armas de fogo, as tropas de Cortés e de Pizarro vencem, sem qualquer dificuldade, a resistência dos Incas, e dos Aztecas. São desfeitos estes impérios, incluindo o Maia, para dar lugar a uma sociedade colonial.

O ouro era o mote principal, extraído das minas de Potosi e de Zacatecas, vem trazer riqueza à metrópole, permitindo à monarquia espanhola um poder nunca visto.

No Outono de 1509, Fernando, o Católico, manda encerrar a sua filha Joana, herdeira do trono do Castela, no castelo de Tordesilhas. A pobre e infeliz rainha tem 30 anos e é cognominada la loca. Até à sua morte, em 1555, todos os actos oficiais levam o seu nome mas ele nunca sai da sua prisão.

Segundo consta, pelos documentos, foram razões de estado que favoreceram este estatuto. Fernando e depois Carlos V, filho de Joana, acomodam-se com a sombra da rainha enclausurada cuja perda da coroa protelam em declarar. A sua "melancolia", termo usado para justificar o terrível acto de encerramento, favorece as intenções, bem pouco se lhe deseja a cura.

O isolamento agrava a loucura de Joana que se recusa a lavar e até mesmo a se lavar. Todavia a rainha conserva-se, aos olhos do povo, como uma figura tutelar e, perante os mais fantasistas, um recurso possível contra o rude poder de Carlos V.

Na verdade nada predestinaria Joana a um tão sombrio destino. Segunda filha dos reis católicos, Fernando II de Aragão e Isabel de Castela, nasce em 1479. A sua beleza tocante, segundo algumas fontes, recorda a sua avó, Joana de Portugal, uma vítima de perturbações mentais. Contudo a infante revela-se inteligente. Dedica-se à música e aprende línguas facilmente. Contudo é um pouco estranha e introvertida, pois é a única, de entre os irmãos, que não deixa qualquer tipo de correspondência.

Como qualquer infanta, o seu destino estava traçado e seria um peão de cariz diplomático de grande valor. O arquiduque Maximiliano da Áustria pede-a em casamento para o seu filho, Filipe, o Belo. Esta união, de enorme importância na história moderna, prepara o domínio dos Habsburgos em Espanha e que perdura até 1715.

Casada por procuração, em Valladolid, no Verão de 1496, com dezassete anos vai ter que deixar a sua família e embarcar para os Países Baixos, ao encontro do seu esposo, que ainda não conhece. Ao fim de uma tremenda viagem de dois meses, Joana desembarca na Zelândia onde causa grande impacto nos flamengos. A sua entrada é um momento de glória. Bem recebida, é aplaudida com entusiasmo.

A lenda conta que os dois esposos se apaixonaram tão profundamente, um pelo outro, que não largaram as mãos, contrariando o protocolo da época. Ele. Filipe, é um jovem amável, espiritual mas também um obstinado político. Ela faz valer os seus direitos de esposa à sucessão de Espanha. Ora, a herdeira titular é a filha mais velha, a rainha da Portugal. Fernando e Isabel inquietam-se com tal atitude tanto mais que Joana os ignora por completo. Tendo sido uma solitária, nutre pelo marido uma enorme paixão enciumada que vive de forma extrema e dolorosa.

Os dois terão seis filhos, entre os quais o Imperador Carlos V e Fernando I. com o passar do tempo, o comportamento de Joana apresenta alguns sinais de debilidade mental, o que inquieta todos os que a rodeiam. Um emissário vindo de Sevilha observa-lhe uma perturbação. O que se passa é que Joana se sente humilhada pela desconfiança dos pais, pelo comportamento do marido que a trai desde o início do casamento e que delapida o seu apanágio.

Desaprova as escolhas políticas do marido, não vê com bons olhos que ele, manobrado pelo ouro francês, aceite em 1499 render homenagem ao novo rei de França, Luís XII, pela Flandres e o Artois, províncias que ela considera suas e se sente lesada. Afinal a sua inteligência e a capacidade de decisão está a ser colocada em causa e ridicularizada. Joana sente-se impotente.

Nesse mesmo ano desaparece, com D. Manuel, o último herdeiro em linha directa de Isabel e Fernando. Joana é chamada a reinar em Castela, Aragão e nas Índias recentemente descobertas. Os reis católicos alarmam-se por ver comprometida a sua obra nas mãos de Filipe, o Belo, a sua obra de unificação. Este mostra-se indiferente perante as propostas de França e de Inglaterra, as vizinhas dos territórios. O bispo de Toledo sugere que Joana é um mero e reles instrumento nas mãos de Filipe, o seu marido.

Joana tenta em vão reter Filipe em Espanha, cuja austeridade abomina pois a sua conduta era outra. Desconfiada das infidelidades de seu marido, Joana vai ao seu encontro. Outros diriam que não se queria confinar em Sevilha. Quando se junta ao marido é uma mulher possessiva, uns ciúmes doentios e exige ser servida apenas por criadas mouras.

A morte de Isabel, a Católica, provoca uma reconciliação provisória. No seu testamento a rainha pede aos súbditos para considerarem Joana como a sua rainha e proprietária dos domínios. Apesar das reticências de Fernando, o casal chega a Espanha para tomar posse da herança. Pelas cortes de 1506, é proclamada rainha.

Uns meses mais tarde Filipe desaparece, vítima de um resfriado. Joana afunda-se numa escuridão estranha e muito profunda. Não aceita a morte do marido e recusa-se a abandonar o caixão tanto que manda embalsamar o corpo. Deixa de tomar decisões políticas, o que fica nas mãos do seu pai, Fernando, que estava em Nápoles, regressa para assegurar a regência, de modo triunfal.

É então que manda enclausurar Joana no castelo de Tordesilhas, onde se instalara perto da capela funerária do seu marido. Contudo Joana é uma mulher apetecível pelo seu património. Henrique VII de Inglaterra pede-a em casamento e trocam-se embaixadores. Os espanhóis assustam-se pois entendem que a rainha está a ser alvo de manipulação. Os opositores fazem recair nela todas as esperanças e assim, dão corpo ao mito que se cria.

Durante as perturbações que se seguem à morte de Fernando, os comuneros, que recusam o poder de Carlos V, conseguem uma entrevista com Joana, em 1520. Pedem-lhe para exercer as prerrogativas reais. Contudo em 1521, os rebeldes são destroçados e Joana não voltará a sair da sua solidão. Com o passar dos tempos acaba por perder a razão e fica completamente perdida. O mito ficou e ela morreu em 1555, esquecida por todos.

Certos amores são tão destruidores que transformam quem os sente. Joana, a mulher cheia de capacidades, ficará para a História do mundo como alguém incapaz e que termina os seus dias sem noção da realidade e convencida de que estava num tempo que já não existia.