Margarida Vale

Os novos medievais

Margarida Vale

Santos Populares

Junho tem um sabor especial pois é o mês dos Santos Populares com festas e arraiais por todo o país nas noites de Santo António, de São João e de São Pedro, o que significa libertação de rotinas e vida ao ar livre com convívio até às tantas. Não que os santos façam parte dos comes e bebes, mas por serem o mote de tempo mais quente e alegria.

Em Lisboa, de 12 para 13 de Junho, dia de Santo António é a noite mais forte, onde tudo pode acontecer e as disputas entre os bairros, os ditos populares, são feitas através de um desfile na Avenida da Liberdade que toma o nome de Marchas Populares. Cada bairro faz o seu trabalho e os preparativos são levados ao pormenor. Não é à toa que se caçam padrinhos e madrinhas, as ditas figuras públicas, para os representar.

Esta artéria fica cheia de gentes que querem apoiar os seus amigos e vizinhos e, como tal, defendem as suas cores e bairros. A cor é dominante e a música faz parte do espectáculo que se quer inesquecível. No final há a marcha que é escolhida como a mais representativa e vai dar glória ao bairro que a ganhou. Alfama, Graça, Bica, Mouraria, Madragoa e tantos outros, são nomes que vão ficando escritos com o suor dos seus moradores.

A vida mora nos bairros, com as conversas de janela e de portas. Nos largos e vielas medievais, come-se caldo verde e sardinha assada, canta-se e dança-se pela noite dentro. Qualquer tema serve para repartir e festejar. A genética está impressa nestes locais. A fé chega com a procissão de Santo António que sai da sua igreja, no local onde o santo nasceu, em 1193.

Santo António tinha fama de casamenteiro e, neste contexto, os Casamentos de Santo António, uma forma simpática de haver uma festa para os casais menos bafejados pelo dinheiro e patrocinados pela Câmara Municipal, são outro acontecimento alto desta data. O desfile dos carros e o copo de água tem transmissão pela televisão e a festa é para ser levada muito a sério.

O Porto não lhe fica atrás e, na noite de 23 para 24 de Junho, quando se celebra o S. João, a festa é inesquecível. São festas muito animadas, em que a população vem para a rua comer, beber e divertir-se pelas ruas dos bairros populares, decoradas com arcos, balões coloridos e manjericos. Como só acontece uma vez por ano, anseia-se com ardor e paixão sendo que a energia libertada é potente. É a noite maior do Porto.

Não lhe falta cor nem alegria nos bairros mais tradicionais, como Miragaia, Fontainhas, Ribeira, Massarelos e outros. Aqui, zona mais a norte do país, os festejos assumem outra dimensão e as tradições são outras. Certos usos e costumes sofrem modernizações e se, antigamente os foliões batiam com o alho-porro na cabeça dos companheiros, hoje usam martelinhos de plástico que, depois de batidos nas cabeças, ninguém se zanga nem leva a mal.

Alho porro que simbolizava o membro masculino, o fálico, exibido sem qualquer tipo de pudor. Também havia os ramos de cidreira que as raparigas passavam na cara dos moços casadoiros ou nem por isso. Estes seriam símbolos dos pêlos púbicos femininos e era uma oferta irrecusável. Fernão Lopes refere-se a esta festa com alegria. Uma colheita das boas.

Para culminar a festa há um exuberante fogo-de-artifício, que é lançado à meia-noite em pleno rio Douro. Os tempos trazem novidades e também se lançam balões de ar quente multicores, numa das mais bonitas celebrações destes festejos populares. A noite acaba para muitos junto à praia, para ver nascer o sol ou para um banho matinal, como manda a tradição.

Esta data é esperada com grande expectativa não só pelos comerciantes como também pelos muitos populares que se orgulham dos seus bairros e fazem questão de mostrar como cuidam deles com zelo e carinho. É uma grande noite, de libertação e o S. João, que é do povo que tanto o apaparica e cuida, dá sempre o ar da sua graça. Tristezas não pagam dívidas.

A 29 de Junho é a vez do São Pedro, outro santo popular que é celebrado em várias localidades do país, como Sintra ou Évora, cidades Património Mundial. Évora, aliás, tem a particularidade de celebrar dois santos populares, pois realiza desde o séc. XVI a feira de S. João, uma das maiores da região sul de Portugal, comemorando também o dia de S. Pedro como feriado municipal.

As zonas ribeirinhas nutrem pelo S. Pedro um amor tão forte que se perde na imensidão dos tempos. Os barcos seguem em procissão e pede-se ao santo que a vida lhes seja facilitada ou agradece-se todas as benesses recebidas.O interessante é que a procissão, no rio, é nocturna e não faltam fiéis para nela participarem. O religioso e o profano sempre de mãos dadas e em perfeito entendimento.

S. Pedro era pescador e foi o primeiro papa. Foi crucificado em Roma, de cabeça para baixo, em 64. Negou conhecer Jesus Cristo, três vezes, como ele havia afirmado, mas deixou um legado que ainda hoje é venerado. Não que seja importante o papado mas por ter sido um homem do povo, de trabalho e labuta.

Nestas festas resistem, com garra, algumas práticas ancestrais como saltar a fogueira, prova dos destemidos e oferecer à namorada ou namorado, pequenos vasos com manjericos, acompanhados de quadras escritas, que muitas vezes falam de amor. Todas estas festividades têm a sua origem no solstício de Verão e ainda em antigos rituais de fertilidade.

Depois de dois anos de restrições, onde as ditas foram suspensas, este ano será rijo em todos os sentidos. O povo precisa de escape para o dia a dia, de libertar as energias que foram sendo recalcadas e enxovalhadas, Beber uns copos de vinho ou de cerveja, com os amigos, é sinal de alegria e comer umas sandes de couratos e torresmos ainda dá mais pica para continuar.

Quanto à sardinha, o peixe que era rejeitado e apenas comido pelos pobres, aburguesou-se e ficou tão fino que nem todos lhe podem chegar. A sardinha passou a senhora dona e o pilim para a pagar ficou tão elevado que parece que se trata de gente fina que gosta de ir ver os pobrezinhos a brincar.