Espelho Cinemático
Daniela Graça
“Ensaio sobre a Cegueira” (2008)
Nas últimas
décadas parece que o interesse por filmes
sobre epidemias e cenários pós-apocalípticos
aumentou. Existe um variado leque de
escolhas desde filmes sobre zombies
de drama como 28 Days Later (2002) ou
de comédia como Shaun of the Dead
(2004) até filmes sobre vírus
assustadoramente reminiscentes do Covid-19
como Contagion (2011). Devido à
grande quantidade de filmes deste género há
sempre obras fílmicas que não têm tanta
atenção no panorama audiovisual como
deveriam ter, como é o caso de Ensaio
Sobre a Cegueira (2008), a versão
cinematográfica da renomada obra literária
homónima de José Saramago, adaptada para o
grande ecrã por Fernando Meirelles, o
aclamado realizador de Cidade de Deus
(2002). O filme é uma co-produção entre o
Canadá, Japão e Brasil sendo falado
maioritariamente em inglês e em algum
japonês. O elenco principal é constituído
por Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice
Braga, Gael García Bernal, Danny Glover,
Yusuke Iseya e Yoshino Kimura.
A história de
Ensaio Sobre a Cegueira inicia-se com um
homem que sem aviso nem explicação, e no
meio do trânsito, fica cego e a sua visão é
mergulhada num mar branco. A cidade depressa
é afetada por esta estranha epidemia de
cegueira branca que se alastra pela
população. O governo declara quarenta
obrigatória e os primeiros infetados são
aprisionados num hospital. Nos dias
seguintes, mais afetados chegam e as alas do
hospital ficam sobrelotadas. Aqueles que não
estão afetados temem a cegueira branca como
se fosse uma praga, evitando os cegos e
exercendo força para os manter isolados.
As personagens em
que a narrativa se foca são da ala 1: o
Primeiro Cego, a Mulher do Primeiro Cego, o
Médico, a Mulher do Médico, a Mulher dos
Óculos Escuros, o Ladrão, o Menino e o Velho
da Venda Preta. Tal como na obra original,
não são utilizados nomes para as personagens
e a ação não se passa em nenhum país
reconhecível, uma vez que o foco da história
não é em localizações ou pessoas
específicas, mas sim na humanidade.
Desorientados com
a cegueira branca e sob a ameaça de serem
mortos a tiro por militares se tentarem sair
das instalações, sem racionamentos de comida
suficientes nem qualquer ajuda externa, o
hospital rapidamente é engolido pela
desordem. Lutas por poder instalam-se apesar
dos esforços do Médico de organizar
democraticamente as alas e da Mulher do
Médico de ajudar e guiar os cegos sem
revelar que consegue ver, já que ela mentiu
sobre ser cega para poder acompanhar o
marido. O lado mais vil e cruel da natureza
humana emerge quando os mais fortes usam a
força e o monopólio dos mantimentos
alimentares para subjugar os mais fracos, o
caos governa o hospital e semeia humilhação,
violência e mortes.
A Mulher do
Médico, a única pessoa que inexplicavelmente
não foi afetada pela cegueira, é quem os
liberta do inferno do hospital e abre os
portões após os militares terem abandonado
as instalações. É ela quem guia o seu
pequeno grupo pela sociedade destabilizada e
em direção a um refúgio longe dos cruéis
instintos primitivos do Homem.
O verdadeiro
horror de Ensaio Sobre a Cegueira não
é a misteriosa epidemia que roubou a visão à
humanidade, mas sim a complexa natureza
humana no seu pior momento, entranhada de
uma crueldade adormecida que brotou atos
atrozes, mas também de uma necessidade e
procura vital por empatia. A natureza humana
é confusa, e de certa forma inexplicável, é
uma amálgama de contradições, tanto capaz de
praticar o bem como o mal, tal como Saramago
diz, no livro através da voz da Mulher de
Óculos Escuros e no filme através da voz do
Velho da Venda Preta: “Dentro de nós há uma
coisa que não tem nome, essa coisa é o que
somos”.
Ensaio Sobre a
Cegueira é uma boa
adaptação de uma obra literária de
excelência. Ficou aquém do original, mas tal
facto é esperado, já que cinema e literatura
são meios de comunicação com complexidades
muito distintas. Meirelles não transpôs toda
a riqueza do original, mas foi fiel à
narrativa original e capturou a sua essência
com naturalidade. O tom e estética do filme
destacam-se em especial com o uso e
manipulação de luz, cores e composições
pictóricas engenhosas e experimentais. Os
brancos dominantes, ofuscantes e desfocados
dos planos em conjunto com transições
inteligentes e precisas transmitem de uma
forma imersiva como a cegueira branca é. Por
sua vez, os desempenhos do elenco foram
razoáveis com a exceção de Julianne Moore,
que interpretou a Mulher do Médico, que
demonstrou uma acuidade emocional
impressionante.
- n.12 • maio 2020