Memórias do Futuro
Memórias de uma orquídea que foi jogada no lixo
Fábio d'Abadia de Sousa
“Da vida
eu tive o melhor e pior”, conforme dizem
algumas orquídeas e pessoas ao fazerem um
balanço de suas vidas.
Mas,
além do pior e do melhor, eu tive o lixo.
Não existe um adjetivo para descrever a
sensação de ser jogada lixo. É o pior do
pior, mas é o melhor do melhor. Eu fiquei
uma semana no lixo, com as raízes expostas
ao sol e com as folhas misturadas com
fraldas sujas e restos de comida. No
primeiro dia, eu só rezava para morrer. Mas,
apesar de tanta ânsia pela morte, eu não
morri. Com o passar do tempo, no entanto, eu
deixei de lutar contra a dor de estar no
lixo, e eu fui descobrindo a maravilhosa e
libertadora sensação de não ter
absolutamente nada a perder.
É como
nadar entre os peixes coloridos dos corais
das ilhas do Caribe e voar entre as aves e
coloridas borboletas e por entre as
estrelas, tudo ao mesmo tempo.
É
como romper todas as fronteiras que eu
acreditava existir entre as coisas: o dia se
mistura com a noite, o mar com a terra, o
amor com o ódio, as pessoas viram árvores e
as plantas viram pessoas, tigres e
sardinhas. Então, eu descobri algo que acho
que seria aquilo que as orquídeas e as
pessoas chamam de essência ou sentido da
existência. Mas antes de falar disso, quero
contar o que acreditava ter sido o melhor e
o pior da minha vida.
Pelo
que eu me lembro, tudo começou na
maravilhosa cidade de Faro, no Algarve,
Portugal, um dos lugares mais ensolarados e
lindos da Europa e que é o berço de uma
civilização humana de mais de três mil anos.
Fenícios, romanos, árabes, lusitanos são
alguns dos povos que originaram a população
que hoje vive nesta região.
Eu amava o clima do Algarve, para mim, até
então, o melhor do mundo. Antes de ter sido
dada de presente a uma noiva por seu
pretendente apaixonado, eu acreditava que o
melhor da minha vida era estar no viveiro
com milhares de outras orquídeas.
Mas eu sempre pressenti que a minha vida
tinha que ter outros propósitos, como, por
exemplo, fazer outros seres felizes. Um dia,
eu fui colocada num caminhão junto com
outras irmãs, e fui enviada para uma loja de
flores no centro da cidade.
Muitas
das pessoas que passavam na calçada em
frente à vitrine onde eu fui colocada, às
vezes, paravam e ficavam a me admirar! Como
eu ficava vaidosa! Nossa! Eu não sabia que
era tão bonita assim!
“Obrigada, obrigadinha!”, dizia eu para todo
mundo! Até que eu dia, um homem parou por
mais de meia hora em frente à vitrine! Eu
cheguei a ficar envergonhada com tanta
admiração! Então, ele entrou, chamou a
vendedora, e disse: “É a flor mais linda que
já vi em minha vida! Vou levá-la para a
minha noiva!” Nossa, o termômetro que mede o
calor da minha vaidade quase explodiu! Eu,
além de linda, era um símbolo de amor, o
sentimento mais nobre entre os humanos!
Quando a noiva me recebeu de presente,
lágrimas desceram de seus lindos olhos
castanhos! E também, é claro, eu fiquei
emocionada, pois não sabia que era capaz de
provocar lágrimas em humanos!
Duas
semanas de pura felicidade se passaram.
Então, numa manhã fria e nublada, a minha
dona chegou até mim chorando copiosamente!
Era um choro estranho, exagerado! Fiquei com
medo! ”Aquele monstro, que jurou me amar
pelo resto da minha vida, me traiu, e o
pior: com um homem! Eu vou matá-lo!” De
repente, ela avançou sobre o vazo onde eu
morava e me atirou pela janela da sala de
estar do apartamento, que ficava no quarto
andar do prédio. Eu caí, de cabeça para
baixo, a uns sete metros do edifício,
exatamente, num monte de lixo que ficava na
calçada, em frente a um terreno abandonado!
Cacos do
meu vazo chegaram a atingir um gato preto
que comia restos de comida chinesa que
estava espalhada no local! O meu choque foi
imenso! Comecei a gritar por ajuda às
pessoas que passavam
pra
lá e pra
cá! “Socorro! Eu sou uma
orquídea linda! Alguém me ajude, por favor!
Eu sou bonita! Olhem para mim, por favor!”
Ninguém olhou. Eu continuei a gritar:
“Socorro! Socorro!”
Foi
inútil. Ninguém me ajudou! De repente, ao
cair da noite, um senhor idoso se aproximou
com seu lindo cachorro da raça São Bernardo!
“Graças a Deus! Serei resgatada!” Mas ele
nem mesmo me viu! Para piorar, o cachorro,
enorme, urinou em cima do pouco que restou
de minhas pétalas! “As minhas folhas ficaram
quase intactas, mas as flores praticamente
não existiam mais! Meu Deus! Como eu fiquei
feia e fedorenta!” Eu chorei a noite toda!
Com o raiar do sol, renovaram-se minhas
esperanças de ser resgatada por alguém.
Centenas de pessoas passaram em frente a
mim, mas ninguém olhava na minha direção. E
assim foram os meus próximos seis dias. Até
que no sétimo dia, quando eu já começava a
morrer, pois minhas raízes estavam expostas
ao sol, um senhor negro parou em frente a
mim e começou a conversar comigo.
“Meu
Deus, o que você está fazendo aí?” Perguntou
ele, com um sotaque brasileiro. Ele me
pegou, com todo o carinho, juntou o que foi
possível da terra que me sustentava e
colocou em um saco plástico que ele colheu
ali perto. Então, eu desmaiei. Quando
acordei, estava debaixo de uma torneira, em
um vazo novo e com terra nova. Eu bebia
daquela água com todo o desespero de quem
voltava da morte!
Os dias
foram passando e eu comecei a ficar com
minhas folhas brilhantes novamente. Então,
depois de uma semana, vi o meu dono
arrumando as suas malas, pois ele iria
retornar para o Brasil, já que tinha
concluído o curso que fora fazer na
Universidade do Algarve. Ele pegou-me do
jeito que eu estava, com vazo e tudo,
enrolou-me com jornal e colocou-me dentro de
um pequeno balde, o qual tapou e lacrou com
fita adesiva. De repente, fez-se uma
escuridão total, mas eu ainda o ouvi dizer:
“Você vai para o Brasil comigo!” Eu perdi a
noção do tempo, mas foram mais de dois dias
naquela situação de breu, confusão e barulho
ensurdecedor de motor de avião.
Eu
pensei fazer um escândalo na alfândega para
avisar que uma cidadã portuguesa estava
sendo contrabandeada para o Brasil. Mas
desisti rapidamente desta ideia. No meu
íntimo, eu tinha certeza que estava sendo
levada para algum lugar onde eu seria muito
feliz! E não é que minha intuição estava
certa?
Quando
voltei a ver a luz novamente, eu estava numa
varanda, no trigésimo andar de um prédio
lindo, na cidade de Goiânia, no Centro-Oeste
brasileiro, onde o sol brilhava
esplendorosamente.
Eu fui
saldada por várias outras plantas que
falavam com sotaque brasileiro. Uma espada
de São Jorge logo me perguntou: “É verdade
que você veio de Portugal? Todas nós aqui
somos plantas que o nosso dono catou no
lixo! Você também foi catada no lixo?
Exausta, mas deslumbrada, eu respondi: “Sim!
Eu fui catada no lixo! Ainda bem que fui
jogada no lixo! Foi a melhor que já me
aconteceu!”
Agora
que vocês entenderam o que foi o melhor e o
pior da minha vida, volto às minhas
reflexões sobre as epifanias que tive a
partir da minha experiência de ter sido
jogada fora. Por exemplo, foi numa noite
estrelada, enquanto jazia ao lado de restos
de comida apodrecida, que eu entendi aquilo
que Edith Piaf canta na canção
Je ne
regrette rien.
Quando
ela diz que tanto o bem quanto o mal são,
para ela, a mesma coisa, eu percebi que
talvez ela tenha querido dizer que tanto o
bem quanto o mal são essenciais ao nosso
crescimento. Talvez o mal seja mais
importante ainda. É ele que nos torna
fortes. No monte de lixo, eu perdi tudo, mas
principalmente todos os medos que tinha,
inclusive o de não agradar aos outros depois
de me esforçar muito para atender às suas
expectativas. As expectativas alheias não
são problemas meus. Eu ainda quero agradar
aos seres com os quais eu convivo, mas não
sofro se não tiver êxito nisso.
Eu
deixei no lixo os dois maiores medos que
podemos ter: o do futuro e o da morte.
Não tenho mais medo do futuro porque sei que
haverá o bem e o mal em cada esquina que
cruzar, e ambos serão bem-vindos para o meu
crescimento. Não tenho mais medo da morte
porque sei que não morrerei.
Nada nem ninguém - nem mesmos os deuses
chicoteadores de orquídeas e pessoas
incrédulas -, vão conseguir apagar o que foi
a minha existência e o orgulho que eu tive
dela! Isso está registado em algum lugar do
espaço-tempo, e pronto! Isso é mais dos que
suficiente para satisfazer o meu desejo de
eternidade. Enquanto começava a me decompor
naquele monte de lixo, em vez de dor, eu
sentia o Universo me abraçando através dos
braços da mãe Terra. Foi o abraço mais
maravilhoso que já experimentei!
Sim,
cheguei a lamentar não ter morrido! Mas não
lamento ter sobrevivido! Agora vejo tudo com
mais clareza e só tenho um único medo: o de
ter medo! Acho que o sentido da minha vida é
esse: não ter medo! Se não tivesse
sobrevivido, eu não poderia contar a minha
história! E eu tenho muito orgulho dela!
Hoje me sinto conectada a tudo e a todos,
tanto no presente quanto no passado e no
futuro! Não sou apenas uma orquídea que
carrega bilhões de anos de informações em
seus genes!
Sou um
ser que faz parte de todos os outros seres e
de todas as estrelas e corpos celestes do
Universo! Como agradecer por tudo isso?
Sendo uma flor, sem medo!
- n.6• novembro 2019