Myriam Jubilot de Carvalho

Por Ondas do Mar de Vigo

Myriam Jubilot de Carvalho

Na praia com Pasternak

 

Hoje aceito o convite e venho até à praia com Pasternak. Conversa para cá e para lá, as palavras são como as cerejas, e vou usufruindo deste testemunho, na primeira pessoa, sobre a época literária em que viveu a primeira parte da sua vida.

Neste momento, é impressionante o seu testemunho sobre a morte de Tolstoi, a sua interpretação da sua personalidade e do seu papel na História Humana. Boris Pasternak está sentado a conversar comigo. A sua infância, os seus pais, ambos artistas, a imensidade de verstas da planície rural da Rússia de há cerca de um século atrás. Delicio-me a ouvi-lo. Parece que eu própria estou lá com ele, comungando das mesmas emoções.

...O ruído das ondas... Esta eterna rebentação azul e branca, este som-de-fundo constante e redundante, este eterno retorno, este imenso matiz do azul do céu – a tornar-se mais pesado ao cair no horizonte sobre o azul do mar. Aguarela que desce do compacto longínquo até à transparência esverdeada da praia. Como teria sido a escrita destes dois monstros sagrados se tivessem sido embalados pelo mar, como eu, desde o nascimento? Como teriam escrito, se em vez de atravessarem a imensidade das verstas rurais, tivessem atravessado o mar azul, num veleiro já com motores a vapor, tendo apenas por limites o mesmo céu, como Conrad? Que palavras, que metáforas teriam escolhido, se em vez das infindáveis planícies nevadas tivessem inspirado este aroma de areia molhada, rochedos limosos, conquilhas, búzios, lingueirões?

É domingo. A população da Grande Lisboa inunda as praias. Como, que digo eu? Do Minho ao Algarve, a costa portuguesa é inundada pela população nacional e pelos turistas que vêm de todos os lados e recantos da Europa. É este fascínio pelo Sol, o Azul sem fim, a Liberdade.

Levantamos os olhos do papel, Pasternak e eu, e comentamos. Tolstoi teria apreciado esta paz. Esta paz que se desprende deste ir e vir das pessoas nesta marginal batida pelo vento dos princípios de Julho. Há quem passeie as crianças carregadas de brinquedos de praia, os eternos baldinhos e pazinhas, formas para moldar bolos de areia e torres de castelos. Há quem passeie os cães, eternos companheiros, levando-os cuidadosamente pela trela. E há os solitários. Os grupos. Os casais. Famílias inteiras, dos avós aos netos.

Os ciclistas. O carro lento sempre presente dos Bombeiros. Jovens. Velhos. Meia-idade. Polícias na ronda. Escoteiros, mochilas às costas, sacos, lancheiras recheadas para todo o dia. Chapéus, bonés, largos decotes, Tshirts aconchegadas, Tshirts soltas. Cores neutras, cores vivas, elegâncias, deselegâncias. A dinâmica das pranchas de desporto, a pachorrice dos guarda-sóis. Bandeira vermelha, bandeira verde. Amarela, como hoje, está vento...

Que no meio de tanta paz, não nos falte nunca o toque neurótico. Já são horas de almoço. O casal que se senta à nossa frente, com um bebé. Ainda não deve ter um ano. Vejo com os meus olhos bem treinados que o bebé já está cansado. Está impertinente, choramingas. São horas do seu almoço calmo, em casa, ou na praia debaixo de uma fresca sombra. Mas não hoje... Os pais sentam-no. A criança rejeita a chucha. Choraminga. A mãe diz-lhe com severidade: Estou muito zangada contigo; estás a portar-te mal. Dão-lhe um brinquedo de plástico vermelho. Ele joga-o ao chão. Metem-lhe outra vez a chucha: Deixas-nos em paz um bocado? O bebé chora. É o pai quem se condói. Levanta-se, toma a criança ao colo, e vai dar uns passinhos na marginal, para o distrair. Depois voltam. Já a mãe comeu a sande, já está mais serena. Deixa o menino sentar-se ao seu colo e brincar-lhe com o colar.

Lembro-me da experiência dos patinhos amarelos que apanham choques eléctricos ao nascer, e ficam sempre dedicados à sádica máquina amarela, como se esta fosse a mãe de carne e osso.

...Eu sei que as pessoas estão cansadas, vêm para a praia para descansar, amanhã é novamente dia de trabalho. Mas onde ficou a ternura?

A empregada da esplanada traz-me a bica. Loira, olhos verdes. Vê o livro aberto de borco sobre a mesa, reconhece a foto da capa:
– Pasternak? A sióra gosta de Pasternak?
É russa. Estudou psicologia, mas ainda não domina suficientemente o Português para se aventurar a exercer a profissão aqui.
– Gostava de falar mais có a sióra, mas ‘tou na hora de serviço...
– Com certeza, fica para depois!
A vasta Europa. Vasta, esta grande mancha no mapa-múndi, a casa de todos nós. Cabemos cá todos. Se soubermos.

Myriam Jubilot de Carvalho, Julho 2017