Letras e Traços
José Maria de Oliveira
O OLHO
- Partilhar 29/09/2021
O olho
espreguiçou-se sorrateiro e lânguido sobro
os seus aconchegados “lençóis palpebráis”
(porque o olho não se abre a não ser que
colapse) e ainda ensonado espraiou a sua
fome de luz sobre as faldas da tarde
generosa que se esfumava, esquecida, nos
umbrais da paisagem…
Como era bom ver!!!
(o principal passatempo do olho). De longe,
o vento trazia o cheiro a maresia, humos e
por vezes o aroma de roupas interiores
lavadas e coradas ao sol - desculpabilizadas
e inocentes…
Ninguém fala dos pecados da
roupa; só o olho e às vezes o nariz (um dos
seus vizinhos mais próximos e atentos) é que
meditam nessas vicissitudes mundanas.
Era
o verão gritante, adunco, viroso, cheio de
mofos e borbulhas comichosas.
Os mais
anafados sorviam, com a palhinha dos lábios
o suar, e esfregavam os olhos ensopados
pelas goteiras que drenavam a testa…
Que
bem se estava na paisagem nesse dia quente
de fim de verão! As pernas em Beja à sombra
dum chaparro, os braços derramados nas
carícias duma falésia adormecida nos Olhos
de Água, os sonhos brincando dispersos num
poial brilhante duma velha casa abandonada
em Mora e os dedos dos pés correndo sobre as
teclas dum piano humano numa sombra
libidinosa debaixo duma sombrinha garrida,
num recanto a estibordo dum esquecido areal
algarvio…
Cá fora; onde o olho não
chegava – porque não era orelha, Gritava-se:
– Viva a República!!!
O Olho (nada mais
merece letra maiúscula senão ele) estava
“aberto” … espraiado sobre o Cosmos e de vez
em quando, cerrando os cortinados da sua
intimidade, virava-se para dentro, e mudava
de cenário talvez para saborear a luz que o
brindava “por dentro” onde, há milhões de
anos, guardava as suas memórias.
O Olho
era e é, sem dúvida, a única prova,
insofismável, do universo a observar-se a si
próprio…e há até quem diga que foi Deus, que
encantado pela sua grandeza, criou aquele
sortilégio, para se poder ver ao espelho,
através da Vida… (Bocas!)
A tarde (uma
das infinitas memórias do olho) esfumava-se
em oníricos matizes, serena, intemporal (a
tarde será sempre a tarde), esquecida do dia
em que nasceu, em tempos, quando a Terra,
depois de muitos tropeções no tempo,
aprendeu a dançar o seu baile rodado de 24
horas e também a valsa da meia-noite!…
Que bem se estava na tarde, debruçado sobre
o olho!
Ah, mas olho, o outro. o gémeo,
(na maior parte das vezes os olhos nascem
aos pares), que maravilha, que regalo, que
lampeiro, ao percorrer silêncios, babado ou
ressequido, as curvas orbitais duma
balzaquiana ou de uma adolescente, ou dum
mancebo esbelto, um velho garanhão, um
copioso repasto… Esse olho era demais!
Há
quem diga que um era de “direita” e outro de
“esquerda” … e assim foram batizados! Esse
olho, louco, por tudo o que é suculento, foi
programada para estar atento ao melhor. Com
o decorrer dos tempos tornara-se um
especialista em oportunismo, deixara há
muito de ser parvo e purista, para se
assumir, atento heterodoxo, catedrático e
acima de tudo: Guloso!
Hoje, há até quem
jure, que quem os possui já vem com eles
“abertos”!
Um olho guloso, heis o que
ele(s) era(m) e não digam que o corpo vai
daqui!
Foi assim que a Zefa, que já
passara dos cinquenta, se apaixonou por
aquele velhinho semimumificado,
semiembalsamado em produtos farmacêuticos,
cosméticos e suplementos, bem agasalhado em
notas de quinhentos (fora os juros) …
O
OLHO, esse globo cósmico espreitante, é, sem
dúvida, a mais espantosa, criação do
Universo. Com ele respira-se um pouco de
Deus e uma das suas infinitas capacidades,
entre elas a de apreciar e Criar a Arte, a
Criatividade, o Amor e essa Consciência onde
revive ao infinito, o seu passado
intemporal…
O OLHO adormeceu aberto sobre
a paisagem infinita da existência que
deslizava permanentemente a seus pés (sim
porque o olho que é OLHO não anda, espera
que as coisas desfilem perante ele! E não
foi por isso e para isso que inventou esse
escravo que é o Ser Humano???
A princípio
era o corpo depois apareceu o olho… e o olho
se fez Rei e governou entre nós!
“Em
terra de cegos, quem tem olhos…”
Que bom
é ser-se OLHO!!!
Nota – Felizmente que os
olhos vesgos não abundam… são coligações que
nunca favoreceram os dons da Natureza…
- n.29 • outubro 2021