José Maria de Oliveira

Letras e Traços

José Maria de Oliveira

O OLHO

O olho espreguiçou-se sorrateiro e lânguido sobro os seus aconchegados “lençóis palpebráis” (porque o olho não se abre a não ser que colapse) e ainda ensonado espraiou a sua fome de luz sobre as faldas da tarde generosa que se esfumava, esquecida, nos umbrais da paisagem…
Como era bom ver!!!  (o principal passatempo do olho). De longe, o vento trazia o cheiro a maresia, humos e por vezes o aroma de roupas interiores lavadas e coradas ao sol - desculpabilizadas e inocentes…
Ninguém fala dos pecados da roupa; só o olho e às vezes o nariz (um dos seus vizinhos mais próximos e atentos) é que meditam nessas vicissitudes mundanas.
Era o verão gritante, adunco, viroso, cheio de mofos e borbulhas comichosas.
Os mais anafados sorviam, com a palhinha dos lábios o suar, e esfregavam os olhos ensopados pelas goteiras que drenavam a testa…
Que bem se estava na paisagem nesse dia quente de fim de verão! As pernas em Beja à sombra dum chaparro, os braços derramados nas carícias duma falésia adormecida nos Olhos de Água, os sonhos brincando dispersos num poial brilhante duma velha casa abandonada em Mora e os dedos dos pés correndo sobre as teclas dum piano humano numa sombra libidinosa debaixo duma sombrinha garrida, num recanto a estibordo dum esquecido areal algarvio…

Cá fora; onde o olho não chegava – porque não era orelha, Gritava-se: – Viva a República!!!
O Olho (nada mais merece letra maiúscula senão ele) estava “aberto” … espraiado sobre o Cosmos e de vez em quando, cerrando os cortinados da sua intimidade, virava-se para dentro, e mudava de cenário talvez para saborear a luz que o brindava “por dentro” onde, há milhões de anos, guardava as suas memórias.
O Olho era e é, sem dúvida, a única prova, insofismável, do universo a observar-se a si próprio…e há até quem diga que foi Deus, que encantado pela sua grandeza, criou aquele sortilégio, para se poder ver ao espelho, através da Vida… (Bocas!)
A tarde (uma das infinitas memórias do olho) esfumava-se em oníricos matizes, serena, intemporal (a tarde será sempre a tarde), esquecida do dia em que nasceu, em tempos, quando a Terra, depois de muitos tropeções no tempo, aprendeu a dançar o seu baile rodado de 24 horas e também a valsa da meia-noite!…
Que bem se estava na tarde, debruçado sobre o olho!
Ah, mas olho, o outro. o gémeo, (na maior parte das vezes os olhos nascem aos pares), que maravilha, que regalo, que lampeiro, ao percorrer silêncios, babado ou ressequido, as curvas orbitais duma balzaquiana ou de uma adolescente, ou dum mancebo esbelto, um velho garanhão, um copioso repasto… Esse olho era demais!
Há quem diga que um era de “direita” e outro de “esquerda” … e assim foram batizados!  Esse olho, louco, por tudo o que é suculento, foi programada para estar atento ao melhor. Com o decorrer dos tempos tornara-se um especialista em oportunismo, deixara há muito de ser parvo e purista, para se assumir, atento heterodoxo, catedrático e acima de tudo: Guloso!
Hoje, há até quem jure, que quem os possui já vem com eles “abertos”!
Um olho guloso, heis o que ele(s) era(m) e não digam que o corpo vai daqui!
Foi assim que a Zefa, que já passara dos cinquenta, se apaixonou por aquele velhinho semimumificado, semiembalsamado em produtos farmacêuticos, cosméticos e suplementos, bem agasalhado em notas de quinhentos (fora os juros) …
O OLHO, esse globo cósmico espreitante, é, sem dúvida, a mais espantosa, criação do Universo. Com ele respira-se um pouco de Deus e uma das suas infinitas capacidades, entre elas a de apreciar e Criar a Arte, a Criatividade, o Amor e essa Consciência onde revive ao infinito, o seu passado intemporal…
O OLHO adormeceu aberto sobre a paisagem infinita da existência que deslizava permanentemente a seus pés (sim porque o olho que é OLHO não anda, espera que as coisas desfilem perante ele! E não foi por isso e para isso que inventou esse escravo que é o Ser Humano???
A princípio era o corpo depois apareceu o olho… e o olho se fez Rei e governou entre nós!
“Em terra de cegos, quem tem olhos…”
Que bom é ser-se OLHO!!!
Nota – Felizmente que os olhos vesgos não abundam… são coligações que nunca favoreceram os dons da Natureza…