Letras e Traços
José Maria de Oliveira
OS LADRÕES SOLARES
- Partilhar 26/05/2021
Quando vim para o
Algarve, há muitos anos, o Sol era ainda uma
bênção democrática dos céus, que entrava
casas adentro, ricas ou pobres, tudo
inundando com a sua bênção purificadora de
luz e calor.
O Algarve era (e ainda é,
sobretudo no interior profundo) um paraíso
soalheiro para os que cá vivem ou para aqui
vêm, na demanda de sossego e da suave
luminosidade mediterrânica destas terras de
Santa Maria…
Foi o meu caso,
quando aqui cheguei (quase de fraldas) em
1948, com os meus pais.
Desde então, até
me fixar no sítio onde hoje moro, percorri
uma boa dezena de casas térreas - desde a
Senhora da Saúde até ao Largo da Sé, em
Faro.
Outro dia,
recordando, entre amigos, este itinerário de
vivências, dei comigo a perguntar para onde
foi o Sol que todas aquelas casas
desfrutavam, então, a maior parte do dia!
Algumas delas ainda existem, contudo
ensombradas, perdidas ao fundo de saguões
bafientos e salubres, servindo, muitas
vezes, de vazadouros de ocasião para muitos
daqueles que moram num qualquer mamarracho
de 30 ou 40 metros de altura.
Hoje, teimam ainda
em subsistir por este Algarve fora, algumas
destas antigas vivendas urbanas emparedadas
entre silenciosos e sombrios abismos de
betão!
Uma coisa, porém,
é certa, estão roubando, por todo o lado, o
Sol aos algarvios sem qualquer compensação,
pedido de desculpa, ou mais-valia - quiçá
brindando-nos, por vezes com tímidos espaços
verdes: - ou quando o rei faz anos (o que já
não acontece há muito tempo) ou o mais
certo, em períodos eleitorais, entre um
punhado de boas intenções! É sempre esta a
forma airosa com que os nossos
"politicamente corretos" representantes nos
têm tratado!
Já chega de
montanhas de calhaus de cimento que nos
derramam, permanentemente, sobre as cabeças,
talvez para nos obrigarem, qual foto
tropismo, a crescermos cada vez mais, para
procurar um Sol cada vez mais alto e que, em
tempos, nos vinha "comer à mão"!
Estão roubando o
pouco Sol que teima ainda em brincar nos
últimos telhados do vermelho citadino do
Algarve.
Quase todas as
cidades da orla algarvia vão-se apagando no
seu traçado antigo
E assim, por todo o
lado se vai destruído, ou procurado destruir
uma Arquitetura Popular Urbana. Onde
platibandas terraços, varandas de ferro
forjado, portas e janelas policromáticas e
poli variadas, - em nome de projetos cada
vez mais despersonalizados, de cimento e
alumínio, por vezes de construção duvidosa,
e vazios de Arte e de História que os
caracterize e procure integrar minimamente!
Acusar quem, para
quê? Não delapidamos nomes e, muito menos,
consciências; também não somos os Juízes de
Nuremberga!
Resta-nos a doce
esperança de que há mais vida para além do
cimento, e, "tal como a água mole em
"argamassa dura"... Tantas fazem que mais
ninguém os atura"…Por outro lado, estão
chegando as gerações de edis, do terceiro
milénio; são já certamente muitos dos nossos
filhos, cansados de "políticos pimba", com
ideias novas, ecológicas, sustentáveis,
humanizadas...
A raiva dos
espezinhados de hoje - vítimas do
"progresso" - descerá então à rua, trazendo,
nos dentes e nos olhos, o gesto vingador das
águas correntes para lavar a valeta e o que
resta das estátuas de sal que hoje
esterilizam o nosso quotidiano de secura e
desalento e ainda havemos de voltar a
petiscar na nossa rua com o alegre chilreado
das crianças que na minha infância enchiam
as noites de verão…
O tempo dos
"cangalheiros de cidades" está chegando ao
fim!
As cidades
latrina, de hoje, falam por si! E há tantas
em Portugal, meu Deus!
Acreditamos,
piamente, que muitos dos novos autarcas
trazem já consigo aquele punhado de sonhos
que nenhuma tecnocracia, ou lucro furibundo,
irá fazer destruir.
Mal de nós se, um
dia, deixarmos de acreditar no Homens e nos
seus Profetas!
Vêm aí as Cidades
de Luz!
• • •
Finalizo, enviando
daqui o meu singelo abraço de gratidão (que
creio será também o da maioria dos algarvios
esclarecidos e amantes da sua terra) à Nobre
Cidade de Tavira (talvez a única cidade do
Algarve que tem sabido, com elegância e
dignidade, crescer sem ter perdido a Alma),
extensivo a todos os seus autarcas, aqui,
"rosas" ou "laranjas" tanto faz, desde que
os tenham tido no sítio, quando precisaram!
Bem hajam!
Até ver são um bom
exemplo para os urbanistas do 5º. Império,
como diria Pessoa.
- n.25 • junho 2021