Jorge Leiria

A Propósito

Jorge Leiria

O meu passeio matinal

1 de Maio de 2020

Como habitualmente saí de manhã para dar o meu passeio, dentro das regras que o nosso governo determina, muito bem suportadas pelas orientações sábias da Direcção Geral de Saúde. Como pessoa que me considero consciente da segurança dos outros e, acima de tudo, consciente de que o meu próprio corpinho, com a idade provecta que ostenta é de veludo, desinfectei-me da cabeça aos pés à base de sabão Clarim, detergente da louça, WC Pato e álcool, como se fosse para um bloco operatório, entrei no carro, e desinfectei-o também como se de uma sala de operações se tratasse.

Ala que ele aí vai. O destino, como sempre, o percurso do Ludo, antes da recta que dá acesso à Praia de Faro. Eu sei que, ao fim do caminho ao longo da ria, ao chegar à Quinta do Lago, já estou a pisar terrenos do concelho de Loulé. Mas é só pôr um pouco o pé em ramo verde, que não há-de ser por tal que as autoridades me hão-de pegar.

Numa extraordinária visão de futuro, foi criado há algum tempo um enorme parque de estacionamento que, tanto quanto depreendo, tem em vista descongestionar o trânsito na referida praia. Nem mais! É aí que estaciono o meu humilde e modesto carrinho.

Faço o meu percurso de hora e meia a pé, que é o que considero adequado para receber a dose aconselhável de vitamina D, raios ultra-violetas e tónico muscular, cuidadosamente afastando-me dos corredores de fundo e ciclistas que para ali vão exibir orgulhosamente os seus lustrosos equipamentos e os seus dotes atléticos.

Regresso ao parque, assumo o comando da viatura, e preparo-me para regressar a casa de onde, neste dia, já não sairei mais - abrenúncio! E eis senão quando deparo-me com uma vedação, entretanto colocada, impedindo-me de ter acesso à rotunda que divide o caminho para a praia, do caminho para Faro. Encurralado entre baias e com um imponente guarda republicano ao pé, as minhas pernas tremiam como varas verdes - nunca gostei de fardas, sempre me atemorizaram.

— Aonde é que você mora e para onde é que você vai?

— Em Faro e vou para Faro;

— E de onde é que vem?

— Do parque de estacionamento logo aqui atrás, onde deixei o carro para fazer um percurso a pé sozinho;

— Como é que passou aqui?

— Às oito e meia o caminho estava livre, não havia baias e não estava aqui nenhum senhor agente (é importante manter uma atitude de deferência);

— Bom, se calhar alguém as tirou. E você conhece os sinais de trânsito?

— Creio que sim, acho que conheço mais ou menos (nisto não se pode afirmar peremptoriamente que se conhece tudo, pois é importante deixar uma margem de manobra para a autoridade brilhar, quando não tomam-nos de ponta, como se lhes roubássemos o dom da sabedoria);

— É que aquele sinal que ali está diz que o transito é proibido, excepto a residentes.

— De facto já tinha visto o sinal, mas não me passou pela cabeça que impedisse o acesso a um parque de estacionamento mesmo aqui ao lado, que é onde se deve estacionar. Convenci-me que era para impedir o acesso às casas rurais das hortas lá ao fundo e impedir os indivíduos que vêm brincar com drones encima daquele morro sobreposto ao aeroporto!

— Não senhor! está todo o acesso proibido!

— Mas então e aquelas autocaravanas ali estacionadas? São residentes?

— Vão sair de lá!

— Bom, estou esclarecido, tão cedo não volto cá (a menos que seja pela surra, pensei eu maldosamente, que Deus me perdoe). Por favor, abra então as baias para passar.

E perante a sua diligência, enquanto me mantinha entre tábuas, ainda lhe disse:

— Mas então estas bicicletas que estão passando por detrás de si, com indivíduos mascarados de ciclistas em cima, mandando bafos de partículas coronáveis a velocidades estonteantes, não são veículos? de duas rodas, bem entendido, mas ainda assim veículos que, apesar de terem as mesmas regras que os outros veículos, andam pelos passeios, andam em contramão, andam nas passadeiras de peões...

— Tentamos controlá-los, mas vêm de todos os lados.

Pensei para mim: aqueles polícias e guardas de antigamente, gordos, flácidos e com ar bonacheirão, mas maus e falsos como Judas, já não existem. Se estes não conseguem, como conseguiriam aqueles? Hoje são jovens atléticos, robustos e ai de quem caia nas suas mãos! Arrepiei-me de pensar!

Porém todos somos humanos. E aquele Adamastor, colapsando, lamentou-se em sincero sofrimento:

— Sabe? Imagine que desde meados de Março que não faço uma maratona na serra.

Simulei um esgar de espanto e exibi, da melhor forma que consegui, uma expressão de profunda compreensão. Desejei-lhe com sinceridade um bom dia e um bom trabalho.

O que é que se há-de fazer? Estamos todos neste barco...