Joaquim Coelho

sem retorno

Joaquim Coelho

OLHOS CASTANHOS SÃO OLHOS NEGROS
ou
Uma Fábula Cautelar de Fricção Científica

Querido leitor: 
Apesar de viver no mesmo planeta que tu, por vezes tenho a sensação que vivo num universo paralelo. Moro num pequeno país, mas o que te vou contar poderia passar-se em qualquer outro — grande ou pequeno — visto que o mal de que te vou falar parece estar a alastrar a todos os países do mundo. 
Se te conto apenas como cá tudo se passou é porque me parece que o caso do meu país é uma história cautelar exemplar, embora possua contornos tão irrealistas que até parece impossível que algo semelhante possa alguma vez ter acontecido.

Moro numa nação onde aproximadamente metade da população tem olhos castanhos e a outra metade olhos negros. Eu, por exemplo, tenho olhos negros. 
Mas não é essa a única diferença, claro. Há imensas desigualdades sociais reais entre os cidadãos da minha pátria: económicas, culturais, educacionais, financeiras... enfim, uma verdadeira nação capitalista do século XXI.

No entanto, leitor, e não sei exactamente quando tudo começou, aconteceu-me um dia, há uns bons anos atrás, reparar que alguns meios de comunicação, empurrados pelas redes sociais da época e pela ambição de certas agendas políticas, começaram a demonstrar um interesse especial pela cor dos olhos dos cidadãos. Um grupo, em especial, destacava-se pelo seu activismo mais... sonoro, vamos chamar-lhe assim. 

A sua causa? O apoio incondicional a (uma pequena minoria de) pessoas de olhos castanhos que, nunca percebi bem porquê, se "auto-intitulam", se "sentem", enfim, como pessoas de olhos negros. São os chamados "Transcromáticos Oculares Negros"  e a quem, daqui em diante, me referirei como "trans-oculares-negros" ou apenas "trans-oculares".

Olhos castanhos são olhos negros.

Parece estranho, eu sei. Começa com o facto que os "sentimentos" de cada um não são exactamente factos científicos e segue que a ciência há muito que possui todas as explicações necessárias para justificar as diferentes colorações dos globos oculares dos humanos. Mas tudo bem, tudo bem...
A princípio (creio que será apenas justo confessá-lo), até eu lhes dei a minha simpatia. E porque não daria? Um grupo de pessoas claramente vulneráveis que sofre de um evidente problema de saúde mental (até agora) praticamente desconhecido do grande público, não há como lhes recusar compaixão... ok, no mínimo, alguma solidariedade. 

E foi precisamente a minha solidariedade que me valeu a primeira "reprimenda social"; corrigiram-me, fazendo-me notar que a DTO ou "Disforia Transcromática Ocular", apesar de figurar há nove décadas na lista de perturbações mentais, não é uma doença mental. Como resultado prático, eu — uma pessoa de olhos negros — sim, eu, fui apelidado de Trans-Nigrofóbico(1) e, durante um par de semanas ou coisa que o valha, fui enxovalhado em todas as redes sociais em que estou presente e, segundo alguns amigos, até noutras em que não estou. 
Ainda assim, tive sorte. Nessa altura — no princípio — os blasfemos que se atreviam, mesmo que involuntariamente (como eu), a contrariar o novo evangelho trans-ocular ainda não eram imediatamente banidos ou cancelados profissionalmente. 

Dirás tu, talvez, caro leitor: 
"Caro cronista, que diabo, a sociedade contemporânea está cheia de grupos sociais que vivem as suas fantasias pelas suas próprias regras... por exemplo, as religiões. Uma religião não é mais do isso mesmo: uma fantasia organizada. E todos nós, diariamente, navegamos e levamos uma vida normal na sua vizinhança... não?"

Pois raciocinas muito bem... Mas a resposta à tua pergunta é "não". Este não é um grupo social qualquer. Num mundo em que toda a gente é constantemente acusada de algum tipo de preconceito — racial, social, etc — os incansáveis e estrepitosos ATRACOS (activistas trans-oculares) souberam, melhor do que ninguém antes deles, activar a vergonha (e a culpa associada) de uma larga faixa da população, de modo a fazer aliados de todos à sua volta. 

E o que é necessário fazer para se ser considerado um "aliado trans-ocular"? É fácil, trata-se apenas de, passe a piadola fácil, olhar o mundo com outros olhos. Ajudar todos aqueles que, apesar de terem olhos castanhos biológicos, "se sentem de olhos negros". Reconhecer que, na verdade, se alguém de olhos castanhos se identifica com olhos negros é porque esse alguém já é de olhos negros. Na verdade, nunca foi de olhos castanhos.

As cores dos olhos são uma construção social.

Pensa só: queres tu ser, meu caro leitor, o insensível responsável, pelos milhares de suicídios diários de indivíduos trans-oculares? Claro que não. 
A escolha é simples: ou estás do lado das vítimas — dos oprimidos que têm olhos negros apesar de serem castanhos —, ou estás do lado dos opressores que têm olhos negros desde sempre? E tu não queres ser um desses canalhas que nega aos seus semelhantes o "
Direito Humano De Auto-Decidir A Cor Dos Seus Próprios Olhos". Por isso, mesmo que tenhas olhos negros e aches que olhos castanhos não são olhos negros, simplesmente olhas para o lado e simpatizas, apoias, exultas e combates pela causa.

E, quanto mais lutas, mais sentes que, de facto, estás num patamar social superior. 
Tão mais alto que em breve — tal como outros antes de ti o sentiram em relação a coisas tão dispares como o paraíso celestial cristão ou a ditadura do proletariado comunista —, também tu já divisas, lá ao longe, o bem ulterior, o bem superior. 
Neste caso particular, um mundo só de olhos negros... Um mundo em que mesmo os olhos castanh... melhor, todos os olhos castanhos — e os azuis... e os verdes, também — são, sempre que assim tal desejem, olhos negros.

– // –

Mas não tem de ser assim. É importante que saibas que podes pensar de maneira diferente e que isso não vai fazer de ti uma pessoa má. Na verdade, há muitos mais que se negam a reconhecer que a realidade individual não tem — obrigatoriamente — de se vergar face à alucinação colectiva. A resistência é real e eu, eu tenho um sonho:

Luto todos os dias para que os olhos negros dos meus filhos um dia possam sair à rua a descoberto, sem as lentes de contacto castanhas que todos os nascidos com olhos negros devem usar para se aperceberem da discriminação que os trans-oculares-negros, supostamente, passam todos os dias. Que não necessitarão de frequentar as aulas de reeducação trans-ocular nem as sessões de auto-recriminação ocular biológica... E que, eventualmente, os seus filhos poderão viver numa sociedade sem olhos trans-neg ...................... negam a ciên ............................ stanhos não são …........ ….................................................................................................

AVISO

Esta mensagem, ilegal à luz da Lei de Igualdade Trans-Ocular de Abril de 2040, foi interceptada pelo Departamento de Consciencialização e Correção Linguística e Social (DECOCOLISO). 
A sua divulgacão constitui uma infração e todos os que a leram devem apresentar-se voluntariamente, até ao fim do dia, no centro de reeducação trans-ocular da sua área da residência.

Olhos trans-negros são olhos negros.

(1) - Nigrofóbico: do latim nigrum, negro + do grego fóbos, medo);