
sem retorno
Joaquim Coelho
CASA VELHA, CASA NOVA
- Partilhar 21/11/2021
A Casa Nova
queixou-se de novo.
Era tudo o que podia
fazer. Murmurar a sua dor. A Casa Velha,
mesmo ao lado, obviamente sentia o rumor das
paredes novas encostadas às suas. A queixa
era, frequentemente, a mesma: algures na sua
parede de leste havia uma dor profunda que a
incomodava, lá quase um metro abaixo, em
plenas estruturas.
A Casa Nova, apesar
de ter sido erigida havia apenas umas
décadas, queixava-se frequentemente deste
problema à Casa Velha que mais não podia
fazer do que ouvi-la... Ou não seja uma
verdade universal que as paredes têm
ouvidos.
Agora, quando me perguntam
porque motivo a Casa Velha ainda dava
atenção à sua congénere mais nova,
respondo-lhes sempre que a Casa Velha —
claramente — encarava a Casa Nova como uma
irmã-gémea, só que muito mais nova.
Eu
explico: a Casa Velha de que vos falo fica
situada na cidade imaginária de Hastebourne,
no Sussex. Na época em que foi erigida, nos
fins do século XIX, a Casa Velha foi
construída, como milhões de outras, geminada
com uma outra casa — neste caso específico —
à sua direita. Duas casas iguais, gémeas,
mas simétricas; opostas como numa imagem
espelhada, reflectindo-se fielmente uma à
outra.
Durante a segunda guerra
mundial, porém, a gémea da Casa Velha foi
uma das primeiras do Reino Unido a ser
destruída (logo durante a primeira semana de
Setembro de 1940) durante um bombardeamento
da Luftwaffe.

A Casa Velha
chorou a perda da sua gémea em silêncio, que
é como as casas choram. Durante mais de
meia-década, até que a reconstrução nacional
teve lugar, a Casa Velha tornou-se motivo de
conversação na vizinhança.
Não
raramente, quando se falava dos tempos
difíceis do conflito, a postura inabalada da
Casa Velha era enaltecida por todos.
Foi
já na década de 1950 que, por fim, a Casa
Nova foi construída. Uma noite, quando as
luzes da sala-de-estar foram acesas pela
primeira vez, a Casa Nova, finalmente,
ganhou vida.
Surpreendida, a Casa Velha
olhou pela primeira vez em muitos anos para
o lugar onde um dia existira a sua irmã e
descobriu que já não estava mais sozinha.
Uma nova irmã-gémea tinha sido construída: a
Casa Nova. A fraternidade, no entanto, já
não era tão evidente. As janelas já não eram
perfeitamente quadradas como as da Casa
Velha, a porta tinha uma ombreira
diferente... Enfim, a Casa Nova, para além
da intenção... Já pouco reflectia
a irmã mais velha.
Uma
pequena nota para lembrar que as casas,
normalmente, apenas
ganham verdadeira
vida à noite, quando se lhes iluminam os
interiores.
Mas a Casa
Velha ganhou afeição à Nova e, aos poucos,
foi-lhe passando os ensinamentos que ganhara
através dos tempos. Como, no princípio, nem
electricidade ela tinha quando fora
construída ou como lhe custava, no fim de
cada inverno, sentir os seus interiores,
encardidos pelo fumo constante das suas
várias lareiras, a serem raspados pelos
limpa-chaminés. Das coisas que mais a
aborreciam na actualidade, a Casa Velha
destacava as ilusões semi-esotéricas de
alguns inquilinos recentes, adeptos do
Feng-Shui, que insistiam em colocar espelhos
ao fundo dos corredores para "aumentar a
dimensão psicológica" da casa ou virar os
pés das camas para Sul, como se cada uma
delas fosse o trono do Império do Meio... A
grande "Tolice Chinesa", como lhe chamava.
Quando o tema da conversa eram as dores
da Casa Nova, a velha lembrava-lhe que muito
possivelmente seria algum espigão de ferro
que permanecera da estrutura da Casa Irmã
Original destruída e que nenhum ser humano
iria alguma vez perceber a sua dor e fazer
algo acerca disso. Dizia-lhe que eram muito
raros, hoje em dia, os pedreiros — livres,
subjugados ou contratados — que sabiam ler
as casas olhando apenas para elas e
descobrir assim a pua, o espinho que a
magoava.
A Casa Nova ouvia tudo com
muita atenção e sentia, por seu lado, um
grande orgulho quando percebia que a Casa
Velha se amparava — cada vez mais — às suas
paredes novas.
Esta história só não
tem fim porque ambas as casas — a Velha e a
Nova — ainda continuam em pé em Carisbrooke
Road, na cidade imaginária de Hastebourne,
no Sussex, apoiando-se física e
psicologicamente uma à outra.
Como duas
irmãs, gémeas, não-idênticas.
- n.30 • novembro 2021