Crónica
Fernando Correia
A HISTÓRIA DOS VELHOS SEM HISTÓRIA
- Partilhar 09/11/2021
Agora já não
presta. Passou o prazo de validade. As rugas
são valas abertas pelas dores da vida e pelo
sofrimento obrigado, para que outros fossem
felizes.
A pele ficou engelhada, como se
fosse papel inútil que nem para embrulho
serve. Podia ser pergaminho, porque ao menos
teria a ver com história. E podia o
amarelecido pelo tempo ser cor de vida,
honra e felicidade de quem foi capaz de a
viver com a dignidade da génese. Mas não. O
corpo passa a ter a forma de fardo pesado e
inútil, espécie de embrulho de pesadelos
para os que se obrigam a cumprir os mínimos
que a sociedade impõe.
E os fardos
abandonam-se.
Os lares são, por isso,
depósitos de almas envelhecidas e de corpos
tisnados por mágoas e ventos e tempestades
do coração.
E são, também, um arquivo
consentido de “gente que já não presta” e,
muitas vezes, são os familiares mais
chegados a aliviar o estorvo.
Porquê?
Porque para além da falta de respeito se
convencionou que apenas se pode ser útil à
sociedade até determinada idade (pouco
depois dos sessenta anos) quando a esperança
de vida aumentou significativamente e cada
vez há mais gente idosa válida, capaz,
inteligente e sabedora que é deitada fora,
qual desperdício de vida.
De longe, de
terras do Oriente e da sabedoria de África
vem o sinal correcto, transformado em luz de
alerta para a humanidade. Os velhos são os
sábios, os respeitados, os conselheiros, os
experientes. Os que devem ser sempre ouvidos
para o desfazer das dúvidas e para a
orientação proveniente do conhecimento e da
longevidade.
Estamos a chegar a uma
quadra convencional de fraternidade e
respeito. É uma época de reflexão, altamente
recomendada por determinadas orientações
religiosas. E mesmo levando em conta a
ambiguidade dos festejos, vale a pena
aproveitar o ensejo para alertar as boas
almas para esta incoerência da vida que é o
menosprezo dos sábios e o refutar da
capacidade humanística dos mais sabedores.
E os velhos morrem. E os velhos não
importam. E os velhos são fardos. E os
velhos são pesadelos. E os velhos são
marginalizados.
E tu que és filho e que
devias ter a honestidade genética e
sensorial de respeitar o teu pai és o
primeiro a ajudá-lo a subir a montanha e a
dar-lhe, como última mortalha para enrolar o
corpo gélido, uma manta que descobriste por
acaso no fundo da arca das recordações.
Talvez não tivesses percebido, mas na hora
do derradeiro adeus, o teu pai ainda soube
entregar-te nas mãos a última lição da sua
vida. Rasgou a manta ao meio, embrulhou- se
em metade e deu-te a outra metade dizendo: –
“Toma, meu filho! Fica com ela até ao dia em
que o teu filho te fizer o mesmo e subir
contigo a montanha do adeus eterno. Pode ser
que ele se esqueça de levar a manta para te
cobrires e, se assim acontecer, terás esta
para aguardares a hora da tua morte sem
sofreres o frio do abandono”.
Mesmo
pegando numa história da História, o que
sobra é algo que se deve definir como
respeito e como acto de solidariedade e de
amor.
Quando as pessoas entenderem o
significado de ser Velho e medirem o tempo
pelo respeito que a idade merece e significa
teremos uma sociedade mais justa, mais
perfeita, mais adulta e onde os afectos
crescem como flores.
- n.30 • novembro 2021