Fernando Correia

Crónica

Fernando Correia

A HISTÓRIA DOS VELHOS SEM HISTÓRIA

Agora já não presta. Passou o prazo de validade. As rugas são valas abertas pelas dores da vida e pelo sofrimento obrigado, para que outros fossem felizes.
A pele ficou engelhada, como se fosse papel inútil que nem para embrulho serve. Podia ser pergaminho, porque ao menos teria a ver com história. E podia o amarelecido pelo tempo ser cor de vida, honra e felicidade de quem foi capaz de a viver com a dignidade da génese. Mas não. O corpo passa a ter a forma de fardo pesado e inútil, espécie de embrulho de pesadelos para os que se obrigam a cumprir os mínimos que a sociedade impõe.
E os fardos abandonam-se.
Os lares são, por isso, depósitos de almas envelhecidas e de corpos tisnados por mágoas e ventos e tempestades do coração.
E são, também, um arquivo consentido de “gente que já não presta” e, muitas vezes, são os familiares mais chegados a aliviar o estorvo.
Porquê?
Porque para além da falta de respeito se convencionou que apenas se pode ser útil à sociedade até determinada idade (pouco depois dos sessenta anos) quando a esperança de vida aumentou significativamente e cada vez há mais gente idosa válida, capaz, inteligente e sabedora que é deitada fora, qual desperdício de vida.
De longe, de terras do Oriente e da sabedoria de África vem o sinal correcto, transformado em luz de alerta para a humanidade. Os velhos são os sábios, os respeitados, os conselheiros, os experientes. Os que devem ser sempre ouvidos para o desfazer das dúvidas e para a orientação proveniente do conhecimento e da longevidade.
Estamos a chegar a uma quadra convencional de fraternidade e respeito. É uma época de reflexão, altamente recomendada por determinadas orientações religiosas. E mesmo levando em conta a ambiguidade dos festejos, vale a pena aproveitar o ensejo para alertar as boas almas para esta incoerência da vida que é o menosprezo dos sábios e o refutar da capacidade humanística dos mais sabedores.
E os velhos morrem. E os velhos não importam. E os velhos são fardos. E os velhos são pesadelos. E os velhos são marginalizados.
E tu que és filho e que devias ter a honestidade genética e sensorial de respeitar o teu pai és o primeiro a ajudá-lo a subir a montanha e a dar-lhe, como última mortalha para enrolar o corpo gélido, uma manta que descobriste por acaso no fundo da arca das recordações.
Talvez não tivesses percebido, mas na hora do derradeiro adeus, o teu pai ainda soube entregar-te nas mãos a última lição da sua vida. Rasgou a manta ao meio, embrulhou- se em metade e deu-te a outra metade dizendo: – “Toma, meu filho! Fica com ela até ao dia em que o teu filho te fizer o mesmo e subir contigo a montanha do adeus eterno. Pode ser que ele se esqueça de levar a manta para te cobrires e, se assim acontecer, terás esta para aguardares a hora da tua morte sem sofreres o frio do abandono”.
Mesmo pegando numa história da História, o que sobra é algo que se deve definir como respeito e como acto de solidariedade e de amor.
Quando as pessoas entenderem o significado de ser Velho e medirem o tempo pelo respeito que a idade merece e significa teremos uma sociedade mais justa, mais perfeita, mais adulta e onde os afectos crescem como flores.