Fábio d'Abadia de Sousa

Memórias do Futuro

Fábio d'Abadia de Sousa

O cinema é preciso
ao mostrar como a sociedade interfere e sabota as relações homoafetivas

Atenção: A partir do terceiro parágrafo, este texto contém spoilers de quatro filmes.

Geralmente, as relações amorosas humanas, pelos mais diversos motivos, são recheadas de conflitos. Mas as relações homoafetivas têm maiores probabilidades de serem mais conflituosas ainda. E o elemento extra a infernizar a vida íntima de mulheres e homens gays é a própria sociedade e suas instituições ou cidadãos comuns em grupos ou isolados, ou seja, o Estado, as religiões, as escolas e universidades, a mídia em geral, as polícias, os vizinhos, os conhecidos, os estranhos, os altos, os baixos, os velhos, os jovens, os visíveis e invisíveis, enfim, quase todo mundo se sente no direito de interferir nas vidas de duas pessoas do mesmo sexo que se amam e que querem apenas tentar usufruir de um pouco de felicidade, se é que existe alguma felicidade! E parece que esta interferência, mesmo quando quer ser sutil, acaba sendo cruelmente ostensiva, e termina por destruir parcial ou completamente uma boa porcentagem dos relacionamentos homossexuais. Infelizmente, por enquanto, a sociedade homofóbica está sendo muito bem-sucedida em controlar os corpos daqueles que ousam destoar da maioria heterossexual.  
Apesar de uma parte considerável dos países ocidentais terem passado a aceitar legalmente, nos últimos anos, uniões estáveis e casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo, os casais gays ainda levam para a cama um terceiro elemento que fará um enorme esforço para destruir suas relações.  Fomos buscar no cinema mainstream (de tendência majoritária) algumas histórias que acreditamos que podem corroborar as afirmações que fazemos aqui.  São as obras: O segredo de Brokeback Mountain (Ang Lee, 2006); Carol (Todd Haynes,2015), Me chame pelo seu nome (de Luca Guadagnino, 2018); Com amor, Simon (2018, de Greg Berlanti). Todos estes filmes foram baseados em obras literárias.  E acreditamos que, independentemente do caráter ficcional, eles exemplificam o real sofrimento que o preconceito da sociedade causa nas relações homoafetivas.

O segredo de Brokeback Mountain - A natureza selvagem e montanhosa do Estado do Wyoming, no Noroeste dos Estados Unidos, testemunha o nascimento do amor entre dois homens contratados para cuidar de gado na região durante os meses de inverno. Entre uma laçada e outra, entre uma tarefa e outra, os dois cowboys, Ennis e Jack (Heath Ledger e Jake Gyllenhall) de aparência rústica, se entregam às carícias um do outro. Flagrados em momentos de intimidades pelo homem que os contratou, os dois são demitidos ao final da temporada de frio intenso. Eles retornam para suas cidades, se casam com mulheres, tornam-se pais, mas, depois de algum tempo de afastamento, eles se reencontram e decidem, pelo menos uma vez por ano, se encontrarem em simuladas viagens de pescaria aos pés da montanha Brokeback.
O tempo passa e o amor cresce entre os dois, mas Ennis não admite nem discutir a possibilidade de assumir uma relação com Jack. A grandiosidade do amor entre os cowboys só é percebida por Ennis depois que um evento trágico acontece com Jack. Então, quando já é tarde demais, Ennis constata que sente tanta falta de Jack, “que mal consegue suportar”. E o que sobra para Ennis é apenas voltar para a sua vida medíocre, agora insuportavelmente mais medíocre ainda!
Geralmente, muitos dos que assistem ao filme ficam bravos com Ennis. Mas como culpá-lo, se toda uma avalanche de preconceito o impede de dar vazão aos seus sentimentos por uma pessoa do mesmo sexo? Como condená-lo se o preconceito da sociedade já o julga e o sentencia a uma pena de morte do seu verdadeiro ser?  Como mandá-lo para o corredor da morte se ele mesmo se mata a cada dia de sua existência? Só nos resta esperar que pelo menos a sociedade que assassina tantos amores e vidas, como as de Ennis e Jack, um dia se dê conta disso.  

Carol – Se a sociedade é implacável com homens que tentam viver a sua homossexualidade, ela é mais cruel inda com as mulheres. É isso que se observa no filme Carol, protagonizado pelas atrizes Kate Blanchet (Carol) e Rooney Mara (Therese).  Nele, a personagem de Blanchet, a Carol, é uma mulher com aparência elegante e sofisticada e, que mesmo casada, ostenta um ar de independência e de que é dona do seu próprio nariz. Mas a pose de Carol é derrubada de forma covarde e implacável pelo seu marido, assim que ele descobre que ela está tendo um caso com Therese, a vendedora de uma loja de departamentos, e que ela pretende abandoná-lo para viver o seu romance homossexual.
Mas o marido deixa bem claro: Carol pode até abandoná-lo, mas ela jamais verá a filha do casal novamente. Chantageada e humilhada, Carol se sente impotente para lutar pela sua relação amorosa com Therese. O golpe baixo do marido a faz aceitar resignadamente o casamento infeliz, sem paixão e sem prazer sexual. O destino de Carol, que se passa numa história dos anos 1960, nos parece atemporal e nos faz imaginar quantas mulheres vivem ou já viveram dramas semelhantes ao longo dos séculos. Carol pelo menos tenta lutar por uma vida mais autêntica e feliz. Não é incomum ouvirmos casos reais de mulheres que, apenas na velhice, depois de viúvas, partem para viver, com outras mulheres, o amor que não puderam viver na juventude seqüestrada e roubada pelos seus próprios pais e maridos.

Me chame pelo seu nome - O antropólogo norte-americano Oliver chega a uma pequena cidade do interior da Itália para fazer uma pesquisa.  Na casa do pesquisador que o acolhe, ele se instala ao lado do quarto do seu filho, o jovem estudante, Elio. Aos poucos, uma paixão avassaladora se desenvolve entre os dois. O forte amor entre eles dura até o dia em Oliver termina sua pesquisa e retorna para os Estados Unidos, para se casar com sua namorada.
Em seu imenso abandono, só resta a Elliot chorar, chorar muito!  Este seria apenas mais um típico roteiro de romances gays que terminam em amores irrealizáveis, exceto por um motivo, os pais de Elio o apoiam incondicionalmente. E cabe ao pai dizer a Elio que não há nada de errado no amor que ele sente por outro homem: “Eu posso ter chegado próximo, mas eu nunca cheguei perto daquilo que vocês dois têm”, diz o pai de Elio ao seu filho, ao ressaltar que, no fundo, sente inveja da intensidade do amor que o filho conheceu.  Elio não para de chorar, mas ele sabe que tem um apoio fundamental para, talvez, superar a ausência de seu grande amor que, por pressão social, decidiu se casar com uma mulher.
E é exatamente este final do filme o que o faz diferente de outros com a mesma temática. Ao invés de condenar o amor do filho por outro homem, o pai deixa bem claro que o apoia sem nenhuma restrição. Elio pergunta se a sua mãe sabe o que acontecendo. O pai diz que acha que não. Mas ao longo do filme fica bem claro, em diversos momentos, que a mãe apenas deixou a interlocução sobre o assunto com o pai, mas ele também demonstra toda sustentação ao filho. E aqui quebra-se o ciclo perverso da rejeição familiar que tanto faz sofrer os homossexuais. O desprezo social continua, mas ele é mais fácil de enfrentar quando se tem o apoio da família.

Com amor, Simon – Neste filme, em que o adolescente Simon, filho de uma típica família branca da classe média norte-americana, o conflito gira em torno da exposição de sua homossexualidade na escola e em casa. Há no filme uma certa dose de humor para tratar de um assunto tão sério, por exemplo, na cena em que ele imagina como seria se os filhos heterossexuais tivessem que “sair dor do armário” e contar aos pais sobre a orientação sexual deles. “Pai, eu sou hétero!” O roteiro ressalta ainda o quanto as coisas mais simples da vida de uma pessoa “hétero” são incrivelmente dramáticas para os gays. Até que possa levar em casa o seu primeiro namorado ou namorada, um filho ou filha homossexual terão que passar por várias crises, constrangimentos e, às vezes, brigas e rejeição. Sem contar o medo de ser expulso de casa.  A história do filme, que se passa na contemporaneidade, nos traz a esperança de que, a cada nova geração que venha, o inferno de nascer gay diminua um pouco.
O importante é frisar que tanto o cinema quanto a literatura e outras manifestações artísticas humana são fundamentais para provocar reflexões sobre a realidade social. Ao depararmos com o espelho que as artes colocam na nossa face, somos obrigados, como sociedade, a refletir a respeito dos nossos preconceitos e crueldades com aqueles que destoam do comportamento da maioria.