Memórias do Futuro
Fábio d'Abadia de Sousa
O cinema é preciso
ao mostrar como a sociedade interfere e sabota as relações homoafetivas
- Partilhar 10/11/2021
Atenção: A partir do terceiro parágrafo, este texto contém spoilers de quatro filmes.
Geralmente, as relações amorosas
humanas, pelos mais diversos motivos, são
recheadas de conflitos. Mas as relações
homoafetivas têm maiores probabilidades de
serem mais conflituosas ainda. E o elemento
extra a infernizar a vida íntima de mulheres
e homens gays é a própria sociedade e suas
instituições ou cidadãos comuns em grupos ou
isolados, ou seja, o Estado, as religiões,
as escolas e universidades, a mídia em
geral, as polícias, os vizinhos, os
conhecidos, os estranhos, os altos, os
baixos, os velhos, os jovens, os visíveis e
invisíveis, enfim, quase todo mundo se sente
no direito de interferir nas vidas de duas
pessoas do mesmo sexo que se amam e que
querem apenas tentar usufruir de um pouco de
felicidade, se é que existe alguma
felicidade! E parece que esta interferência,
mesmo quando quer ser sutil, acaba sendo
cruelmente ostensiva, e termina por destruir
parcial ou completamente uma boa porcentagem
dos relacionamentos homossexuais.
Infelizmente, por enquanto, a sociedade
homofóbica está sendo muito bem-sucedida em
controlar os corpos daqueles que ousam
destoar da maioria heterossexual.
Apesar de uma parte considerável dos países
ocidentais terem passado a aceitar
legalmente, nos últimos anos, uniões
estáveis e casamentos civis entre pessoas do
mesmo sexo, os casais gays ainda levam para
a cama um terceiro elemento que fará um
enorme esforço para destruir suas relações.
Fomos buscar no cinema
mainstream (de tendência majoritária)
algumas histórias que acreditamos que podem
corroborar as afirmações que fazemos aqui.
São as obras: O segredo de
Brokeback Mountain (Ang Lee, 2006);
Carol (Todd Haynes,2015), Me chame
pelo seu nome (de Luca Guadagnino,
2018); Com amor, Simon (2018, de Greg
Berlanti). Todos estes filmes foram baseados
em obras literárias. E
acreditamos que, independentemente do
caráter ficcional, eles exemplificam o real
sofrimento que o preconceito da sociedade
causa nas relações homoafetivas.
O segredo de Brokeback Mountain - A
natureza selvagem e montanhosa do Estado do
Wyoming, no Noroeste dos Estados Unidos,
testemunha o nascimento do amor entre dois
homens contratados para cuidar de gado na
região durante os meses de inverno. Entre
uma laçada e outra, entre uma tarefa e
outra, os dois cowboys, Ennis e Jack (Heath
Ledger e Jake Gyllenhall) de aparência
rústica, se entregam às carícias um do
outro. Flagrados em momentos de intimidades
pelo homem que os contratou, os dois são
demitidos ao final da temporada de frio
intenso. Eles retornam para suas cidades, se
casam com mulheres, tornam-se pais, mas,
depois de algum tempo de afastamento, eles
se reencontram e decidem, pelo menos uma vez
por ano, se encontrarem em simuladas viagens
de pescaria aos pés da montanha Brokeback.
O tempo passa e o amor cresce entre
os dois, mas Ennis não admite nem discutir a
possibilidade de assumir uma relação com
Jack. A grandiosidade do amor entre os
cowboys só é percebida por Ennis depois que
um evento trágico acontece com Jack. Então,
quando já é tarde demais, Ennis constata que
sente tanta falta de Jack, “que mal consegue
suportar”. E o que sobra para Ennis é apenas
voltar para a sua vida medíocre, agora
insuportavelmente mais medíocre ainda!
Geralmente, muitos dos que assistem ao
filme ficam bravos com Ennis. Mas como
culpá-lo, se toda uma avalanche de
preconceito o impede de dar vazão aos seus
sentimentos por uma pessoa do mesmo sexo?
Como condená-lo se o preconceito da
sociedade já o julga e o sentencia a uma
pena de morte do seu verdadeiro ser? Como
mandá-lo para o corredor da morte se ele
mesmo se mata a cada dia de sua existência?
Só nos resta esperar que pelo menos a
sociedade que assassina tantos amores e
vidas, como as de Ennis e Jack, um dia se dê
conta disso.
Carol
– Se a sociedade é implacável com homens que
tentam viver a sua homossexualidade, ela é
mais cruel inda com as mulheres. É isso que
se observa no filme Carol, protagonizado
pelas atrizes Kate Blanchet (Carol) e Rooney
Mara (Therese). Nele, a
personagem de Blanchet, a Carol, é uma
mulher com aparência elegante e sofisticada
e, que mesmo casada, ostenta um ar de
independência e de que é dona do seu próprio
nariz. Mas a pose de Carol é derrubada de
forma covarde e implacável pelo seu marido,
assim que ele descobre que ela está tendo um
caso com Therese, a vendedora de uma loja de
departamentos, e que ela pretende
abandoná-lo para viver o seu romance
homossexual.
Mas o marido deixa bem
claro: Carol pode até abandoná-lo, mas ela
jamais verá a filha do casal novamente.
Chantageada e humilhada, Carol se sente
impotente para lutar pela sua relação
amorosa com Therese. O golpe baixo do marido
a faz aceitar resignadamente o casamento
infeliz, sem paixão e sem prazer sexual. O
destino de Carol, que se passa numa história
dos anos 1960, nos parece atemporal e nos
faz imaginar quantas mulheres vivem ou já
viveram dramas semelhantes ao longo dos
séculos. Carol pelo menos tenta lutar por
uma vida mais autêntica e feliz. Não é
incomum ouvirmos casos reais de mulheres
que, apenas na velhice, depois de viúvas,
partem para viver, com outras mulheres, o
amor que não puderam viver na juventude
seqüestrada e roubada pelos seus próprios
pais e maridos.
Me chame pelo seu
nome - O antropólogo norte-americano
Oliver chega a uma pequena cidade do
interior da Itália para fazer uma pesquisa.
Na casa do pesquisador que o acolhe,
ele se instala ao lado do quarto do seu
filho, o jovem estudante, Elio. Aos poucos,
uma paixão avassaladora se desenvolve entre
os dois. O forte amor entre eles dura até o
dia em Oliver termina sua pesquisa e retorna
para os Estados Unidos, para se casar com
sua namorada.
Em seu imenso abandono, só
resta a Elliot chorar, chorar muito!
Este seria apenas mais um típico
roteiro de romances gays que terminam em
amores irrealizáveis, exceto por um motivo,
os pais de Elio o apoiam incondicionalmente.
E cabe ao pai dizer a Elio que não há nada
de errado no amor que ele sente por outro
homem: “Eu posso ter chegado próximo, mas eu
nunca cheguei perto daquilo que vocês dois
têm”, diz o pai de Elio ao seu filho, ao
ressaltar que, no fundo, sente inveja da
intensidade do amor que o filho conheceu.
Elio não para de chorar, mas ele sabe
que tem um apoio fundamental para, talvez,
superar a ausência de seu grande amor que,
por pressão social, decidiu se casar com uma
mulher.
E é exatamente este final do
filme o que o faz diferente de outros com a
mesma temática. Ao invés de condenar o amor
do filho por outro homem, o pai deixa bem
claro que o apoia sem nenhuma restrição.
Elio pergunta se a sua mãe sabe o que
acontecendo. O pai diz que acha que não. Mas
ao longo do filme fica bem claro, em
diversos momentos, que a mãe apenas deixou a
interlocução sobre o assunto com o pai, mas
ele também demonstra toda sustentação ao
filho. E aqui quebra-se o ciclo perverso da
rejeição familiar que tanto faz sofrer os
homossexuais. O desprezo social continua,
mas ele é mais fácil de enfrentar quando se
tem o apoio da família.
Com amor,
Simon – Neste filme, em que o
adolescente Simon, filho de uma típica
família branca da classe média
norte-americana, o conflito gira em torno da
exposição de sua homossexualidade na escola
e em casa. Há no filme uma certa dose de
humor para tratar de um assunto tão sério,
por exemplo, na cena em que ele imagina como
seria se os filhos heterossexuais tivessem
que “sair dor do armário” e contar aos pais
sobre a orientação sexual deles. “Pai, eu
sou hétero!” O roteiro ressalta ainda o
quanto as coisas mais simples da vida de uma
pessoa “hétero” são incrivelmente dramáticas
para os gays. Até que possa levar em casa o
seu primeiro namorado ou namorada, um filho
ou filha homossexual terão que passar por
várias crises, constrangimentos e, às vezes,
brigas e rejeição. Sem contar o medo de ser
expulso de casa. A história do
filme, que se passa na contemporaneidade,
nos traz a esperança de que, a cada nova
geração que venha, o inferno de nascer gay
diminua um pouco.
O importante é frisar
que tanto o cinema quanto a literatura e
outras manifestações artísticas humana são
fundamentais para provocar reflexões sobre a
realidade social. Ao depararmos com o
espelho que as artes colocam na nossa face,
somos obrigados, como sociedade, a refletir
a respeito dos nossos preconceitos e
crueldades com aqueles que destoam do
comportamento da maioria.
- n.30 • novembro 2021