Memórias do Futuro
Fábio d'Abadia de Sousa
Memórias de um menino que vivia num bordel
As fotos que não quero devolver
- Partilhar 10/06/2021
Eu
fui fotografado em duas únicas ocasiões ao
longo de minha infância. As duas vezes
aconteceram durante o rápido período (talvez
pouco mais de um ano) em que fui adotado por
uma família de pequenos agricultores no
interior de Goiás, na região do município de
Silvânia. Só obtive acesso a essas imagens
quando já tinha uns 40 anos, e foi quando,
por acaso, tive um encontro com uma pessoa
que é parente da família que me adotou. Esta
pessoa também era criança, com eu, nos anos
de 1970,
e esporadicamente, eu mantinha algum contato
com ela quando tinha uns cinco anos de
idade, época em que fui “dado” para esta
família de agricultores. “Dar” era o termo
coloquial usado na época quando um pai ou
mãe simplesmente podia doar um filho para
qualquer pessoa que lhe conviesse, sem
passar pela supervisão da justiça. Esta
pessoa me repassou duas fotos nas quais eu
aparecia, desde que eu as devolvesse,
conforme condicionou. Eu ainda não devolvi,
isso porque não quis mais ver essa pessoa.
Ela não me fez nada de mal,
intencionalmente! Mas o fato de essa família
parente dela ter me adotado e, depois, ter
me devolvido para viver com minha mãe nos
bordéis da cidade de Anápolis (GO) é algo
que ainda me machuca. Se esta dor acabar
algum dia (eu duvido!), eu procuro esta
pessoa que me repassou as fotos e eu as
devolvo, mas ainda não consigo.
Eu já
entendi quase que perfeitamente que viver
perambulando com minha mãe pelos cabarés de
Anápolis foi o melhor destino para mim e
algo que, se eu pudesse escolher hoje, eu
optaria pelo mesmo caminho. Mas foi um
caminho mais tortuoso! No pouco tempo em que
vivi com a família de agricultores, a qual
passei a chamar de pai, mãe e irmãos (eles
tinham três meninas e um garotinho), eu
senti uma proteção que jamais experimentei
ao lado da minha mãe. Nos bordéis, junto com
minha mãe, era como se a cada dia fosse
acontecer uma tragédia. E geralmente
acontecia. Ao lado da família de
agricultores, apesar de a mulher me espancar
de vez em quando, eu me sentia parte de uma
rede de segurança que sempre me apoiaria sem
importar o que viesse acontecer.
Infelizmente, esta rede só existia na minha
mente.
E ela
se rompeu completamente no dia em que fui
devolvido. Hoje eu percebo que chorei de
tristeza por dias seguidos não por voltar a
viver errante com minha mãe, mas porque me
senti absolutamente traído pelas pessoas que
me adotaram. Uma traição, para mim, do
tamanho do mundo. Uma traição só porque eu
não era o filho ideal que eles almejavam!
Acho que é um milagre que ainda tenha
voltado a confiar em pessoas! Mas, se a
minha vida, na infância, teve muitas dores,
ela também teve muitos milagres. Aliás, cada
dia em que sobrevivia era um milagre! E
foram tantos milagres que eu não perdi a
confiança nas pessoas e que, além disso, eu
aprendi a confiar em anjos! Quando as
pessoas me abandonaram absolutamente, lá
vinham os anjos segurar a minha mão, anjos,
quase sempre na forma de pessoas, é claro!
É por
isso que perdoo as pessoas! E por isso,
principalmente, que perdoo a mim mesmo por
ser também, às vezes, tão falho quanto todos
os humanos que me cercam!
Ainda
não consigo devolver as fotografias, talvez
por me sentir o verdadeiro dono delas.
É a
minha vida que aparece nelas! Talvez também
por querer, deliberadamente, magoá-los! Acho
que eles me magoaram muito mais! Mas não é
por isso que não devolvo as fotos, elas são
uma prova de que vivi tudo isso que acho que
vivi, mesmo que as imagens me mostrem em
situações de exceção. Numa delas, ao fazer
parte de uma cerimônia de casamento, eu
apareço ricamente (eu acho isso) vestido em
um terno infantil, inclusive com gravata
borboleta.
Na
outra imagem, da qual eu me lembro com certa
clareza, era um domingo especial no qual
toda (e apenas) a minha (então) família
aparece, acho que ao redor de um bolo. Sim,
na minha infância, eu tive uma família
padrão como quase todo mundo, mesmo que por
pouco tempo!
Um
dia eu fui parte de uma rede de proteção!
Hoje,
eu acredito que o caminho que os desígnios
da existência estabelece para gente é
realmente aquele pelo qual devemos trilhar!
Será que teria tanto orgulho da jornada que
segui se tivesse ficado com a aquela família
de agricultores? Tenho quase certeza que
não! Mas sou imensamente grato a eles por
terem sido um oásis na jornada da minha
infância, quase sempre caminhada em
escaldantes dunas desérticas! Obrigado por
terem sido meu pai, minha mãe e meus
queridos irmãos! Ah, um dia eu devolvo as
fotos a vocês! Eu acho!
Ah, Eu estou bem! Maravilhosamente bem!
- n.25 • junho 2021