Fábio d'Abadia de Sousa

Memórias do Futuro

Fábio d'Abadia de Sousa

Memórias de um menino que vivia num bordel
As fotos que não quero devolver

Eu fui fotografado em duas únicas ocasiões ao longo de minha infância. As duas vezes aconteceram durante o rápido período (talvez pouco mais de um ano) em que fui adotado por uma família de pequenos agricultores no interior de Goiás, na região do município de Silvânia. Só obtive acesso a essas imagens quando já tinha uns 40 anos, e foi quando, por acaso, tive um encontro com uma pessoa que é parente da família que me adotou. Esta pessoa também era criança, com eu, nos anos de 1970, e esporadicamente, eu mantinha algum contato com ela quando tinha uns cinco anos de idade, época em que fui “dado” para esta família de agricultores. “Dar” era o termo coloquial usado na época quando um pai ou mãe simplesmente podia doar um filho para qualquer pessoa que lhe conviesse, sem passar pela supervisão da justiça. Esta pessoa me repassou duas fotos nas quais eu aparecia, desde que eu as devolvesse, conforme condicionou. Eu ainda não devolvi, isso porque não quis mais ver essa pessoa. Ela não me fez nada de mal, intencionalmente! Mas o fato de essa família parente dela ter me adotado e, depois, ter me devolvido para viver com minha mãe nos bordéis da cidade de Anápolis (GO) é algo que ainda me machuca. Se esta dor acabar algum dia (eu duvido!), eu procuro esta pessoa que me repassou as fotos e eu as devolvo, mas ainda não consigo.

Eu já entendi quase que perfeitamente que viver perambulando com minha mãe pelos cabarés de Anápolis foi o melhor destino para mim e algo que, se eu pudesse escolher hoje, eu optaria pelo mesmo caminho. Mas foi um caminho mais tortuoso! No pouco tempo em que vivi com a família de agricultores, a qual passei a chamar de pai, mãe e irmãos (eles tinham três meninas e um garotinho), eu senti uma proteção que jamais experimentei ao lado da minha mãe. Nos bordéis, junto com minha mãe, era como se a cada dia fosse acontecer uma tragédia. E geralmente acontecia. Ao lado da família de agricultores, apesar de a mulher me espancar de vez em quando, eu me sentia parte de uma rede de segurança que sempre me apoiaria sem importar o que viesse acontecer. Infelizmente, esta rede só existia na minha mente.  E ela se rompeu completamente no dia em que fui devolvido. Hoje eu percebo que chorei de tristeza por dias seguidos não por voltar a viver errante com minha mãe, mas porque me senti absolutamente traído pelas pessoas que me adotaram. Uma traição, para mim, do tamanho do mundo. Uma traição só porque eu não era o filho ideal que eles almejavam! Acho que é um milagre que ainda tenha voltado a confiar em pessoas! Mas, se a minha vida, na infância, teve muitas dores, ela também teve muitos milagres. Aliás, cada dia em que sobrevivia era um milagre! E foram tantos milagres que eu não perdi a confiança nas pessoas e que, além disso, eu aprendi a confiar em anjos! Quando as pessoas me abandonaram absolutamente, lá vinham os anjos segurar a minha mão, anjos, quase sempre na forma de pessoas, é claro!  É por isso que perdoo as pessoas! E por isso, principalmente, que perdoo a mim mesmo por ser também, às vezes, tão falho quanto todos os humanos que me cercam!

Ainda não consigo devolver as fotografias, talvez por me sentir o verdadeiro dono delas.  É a minha vida que aparece nelas! Talvez também por querer, deliberadamente, magoá-los! Acho que eles me magoaram muito mais! Mas não é por isso que não devolvo as fotos, elas são uma prova de que vivi tudo isso que acho que vivi, mesmo que as imagens me mostrem em situações de exceção. Numa delas, ao fazer parte de uma cerimônia de casamento, eu apareço ricamente (eu acho isso) vestido em um terno infantil, inclusive com gravata borboleta.  Na outra imagem, da qual eu me lembro com certa clareza, era um domingo especial no qual toda (e apenas) a minha (então) família aparece, acho que ao redor de um bolo. Sim, na minha infância, eu tive uma família padrão como quase todo mundo, mesmo que por pouco tempo!  Um dia eu fui parte de uma rede de proteção!

 Hoje, eu acredito que o caminho que os desígnios da existência estabelece para gente é realmente aquele pelo qual devemos trilhar! Será que teria tanto orgulho da jornada que segui se tivesse ficado com a aquela família de agricultores? Tenho quase certeza que não! Mas sou imensamente grato a eles por terem sido um oásis na jornada da minha infância, quase sempre caminhada em escaldantes dunas desérticas! Obrigado por terem sido meu pai, minha mãe e meus queridos irmãos! Ah, um dia eu devolvo as fotos a vocês! Eu acho!

Ah, Eu estou bem! Maravilhosamente bem!