Cante na Alma


O Jogo da Bola
Desidério Lucas do Ó

Eu gosto muito do jogo da bola, o pior é que não temos uma bola boa. Fazemos bolas com meias velhas e trapos e jogamos com elas. São boas para dar muitos toques, mas não saltam e o jogo é sempre rasteiro.
Um dia destes esteve cá um rapaz que não é da vila e trouxe uma bola de borracha que saltava muito.
A bola tinha laivos verdes e brancos, saltava mais do que o cão pelo de arame do primo Sebastião Estrela, era novinha em folha.
O moço até me deixou dar uns toques antes de começarmos o jogo. Quem escolheu as equipas foi esse moço e o Vítor. Eu fiquei a guarda-redes. Gostava mais de ter ficado a jogar a avançado, sempre podia ter metido algum golo, tão fácil era rematar com aquela bola linda!
Desta vez o jogo acabou em bem, não houve zaragata e até deixámos o dono da bola ganhar; ele até não era grande coisa, mas os companheiros passavam-lhe muito a bola para ele não se chatear, pegar na bola e ir-se embora.
Nessa noite não pensei noutra coisa: era bom ter uma bola assim e não aquelas bolas de trapo que se tornavam muito pesadas quando chovia.
Fui para a cama a pensar na bola, como seria bom ter uma! Sonhei com ela mas, quando acordei, ainda procurei debaixo das mantas mas nada, a bola não estava lá.
Pensei que, se voltasse a sonhar com ela, a seguraria com toda a força para que ela não se me escapasse outra vez. Não valia a pena tentar comprar uma, na vila não havia bolas daquelas à venda e se houvesse deviam custar muito dinheiro.
Nessa noite até fui mais cedo para a cama. Como não pensava noutra coisa tinha a certeza que ia voltar a sonhar com ela. E sonhei, sonhei com aquela bola linda, aos laivos brancos e verdes, dura, saltitona, que iria guardar muito bem guardadinha para a minha mãe não ver.
Acordei ainda era noite escura. Tinha as mãos engelhadas, doridas, mas a bola tinha-se novamente escapado.

Desidério do Ó, 2019
in . “Do Alentejo pró Mundo com o Cante na Alma”