Afonso Dias

reflexões in verso

Afonso Dias

o meu sítio

o meu sítio

no meu sítio
     (que é onde eu quero)
sei aonde estão
a cómoda
a prateleira
o estendal
a paisagem
o computador
as fotografias
as flores
e sei
o lugar da mesinha dos segredos
à cabeceira da cama certa
com a gaveta velada
maçónica
atulhada de truques
e duendes cúmplices

porque é no meu sítio
     (por muito que o meu sítio mude de sítio)
que está o altar da segurança
e o azeite sem acidez
a alumiar o apetite
e o leito ajeitado
ao baloiço das madrugadas exactas

e eu preciso sempre e tanto
de voltar ao meu sítio
que é onde sei que é
a certeza

às vezes distrai-se o amor
e perde-se
no meu sítio
     (que é os meus sítios todos)
e a perdição de amor
instala sempre um frio
muito azul
com ressonâncias boreais
cálidas e mentirosas
a prometerem ondulações brandas
onde a beleza prometida
só gela inércia lúgubre
e mais nada

mas tudo é perfeito
e resolúvel
no meu sítio
     essa é que é essa
e surge sempre na carência dos actos
um gesto sábio
que vem porque é preciso
a desenhar os caminhos
por onde seguem as horas

e porque é tudo verdade no meu sítio
o medo fica sempre lá fora
arredado dos lugares de abrigo
que ergo em volta
de todos os sítios
do meu sítio

às vezes
arrepios impertinentes
afloram tolos
pele adentro
mas são de afecto
apenas
e fazem falta

regularmente a insónia
vem aos solavancos
e o tempo fica desolado
e bêbado
a cambalear as horas
porém outras vezes
a insónia vem clara e recheada
de poemas e afagos
ou de preguiça
a reclamar vigília
ampla e generosa
qual ama de leite
flamenga e plena

e pela vigília viajam risos
e embaraços
com pessoas
e luz
inquietação
e sombras

tudo falta
e tudo há no meu sítio
e é assim que tem de ser

no meu sítio
até há
uma voz permanente
a ditar acordes a jobim
e uma canção de paul simon
a tecer as cortinas
que não há

“let us be lovers...”

sem o meu sítio
cá dentro
não teria para onde voltar
depois de ir

26.7.2021

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