intimidade
olho aquela
exacta criatura
humana
ali parada
e vejo que olha
numa certa
direcção
reparo que tem
um corpo
igual ao meu
olhos pernas boca
e cabelo solto
indiferente ao
género
sigo-lhe o olhar
e vou com ele
minucioso
alcanço o objecto
que observa
fixo-me
no seu alvo
mas sou proibido de atingir
o fundo do que vê
não me é
permitido
viajar ao interior
daquele pensamento
(e sei que é lá que moram
as fotos e as sensações
de arrepio e calma
recolhidas por aquele olhar)
não me é consentido aceder
aos voluptuosos segredos
da sua intimidade
silenciosa
privada
plena
(é verdade que
nunca se tem acesso
à intimidade
silenciosa
privada
plena
de qualquer
humana criatura)
o deleite mais
aceso
ou a mais gélida tortura
não alcançam o nada
que preenche o fundo
da ideia
inexpugnável fortaleza
que só raramente se revela
em caridosos átomos
de claridade
consigo
distinguir
nítido
o mercado
no destino daquele olhar
(de qualquer olhar)
mas não lobrigo nele
a substância
dos mistérios
verduras ou
encontros
carinho brando ou fuga
fome ou luz inquieta
…………..
voltou-se
e olhou para mim a criatura
humana
mas não consegui
decifrar
o fundo dos ritos
apenas anotei
o que sem saber já sabia
que tudo quanto
eu vejo
até ao fundo
não vê a criatura que eu vejo
mesmo que eu o queira
que o íntimo da
minha
íntima raiz
é a flor dum segredo
que nenhuma navegação
desvenda
e que nem as minhas palavras nomeiam
porque a ela
inteiramente
não acedem
resta ao
não-entendimento
a confiança sábia
do instinto
a liturgia respeitosa
do silêncio
e o total repúdio
dos oráculos
24.01.2021