Afonso Dias

reflexões in verso

Afonso Dias

intimidade

intimidade

olho aquela exacta criatura
humana
ali parada
e vejo que olha
numa certa
direcção 

reparo que tem um corpo
igual ao meu
olhos  pernas   boca
e cabelo solto 

indiferente ao género
sigo-lhe o  olhar
e vou com ele
 

 minucioso
alcanço o objecto
que observa 

fixo-me  no seu alvo
mas sou proibido de atingir
o fundo do que vê 

não me é permitido
viajar ao interior
daquele pensamento
(e sei que é lá que moram
as fotos e as sensações
de arrepio e calma
recolhidas por aquele olhar)
não me é consentido aceder
aos voluptuosos segredos
da sua intimidade
silenciosa
privada
plena 

(é verdade que
nunca se tem acesso
à intimidade
silenciosa
privada
plena
de qualquer
humana criatura) 

o deleite mais aceso
ou a mais gélida tortura
não alcançam o nada
que preenche o fundo
da ideia
inexpugnável fortaleza
que só raramente se  revela
em caridosos átomos
de claridade 

consigo distinguir
nítido
o mercado
no destino daquele olhar
        (de qualquer olhar)
mas não lobrigo nele
a substância
dos mistérios 

verduras ou encontros
carinho brando ou fuga
fome ou luz inquieta 

………….. 

voltou-se
e olhou para mim a criatura
humana 

mas não consegui decifrar
o fundo dos ritos 

apenas anotei
o que sem saber já sabia  

que tudo quanto eu vejo
até ao fundo
não vê a criatura que eu vejo
mesmo que eu o queira 

que o íntimo da minha
íntima raiz
é a flor dum segredo
que nenhuma navegação
desvenda
e que nem as minhas palavras nomeiam
porque a ela
inteiramente
não acedem 

resta ao não-entendimento
a confiança sábia
do instinto
a liturgia respeitosa
do silêncio 

e o total repúdio
dos oráculos 

24.01.2021