Por Ondas do Mar de Vigo
Myriam Jubilot de Carvalho
Lenda de Muqaddam Ibn Muafá, Al-Cabrí
À memória de
minha avó Maria Carlota da Ascensão Jubilot
Madrugada. Suave, a brisa refrescava o
alpendre a um canto do jardim. Grande, o
grupo que desde o cair da tarde ali se ia
juntando em volta da fogueira que os
escravos não deixavam esmorecer. A Primavera
já se instalara mas as madrugadas eram ainda
muito frias, ainda se sentia a necessidade
do conforto das mantas de lã de ovelha em
entrelaçados brancos e castanhos, estendidas
ao longo dos largos almofadões. E havia
também muito com que aquecer o corpo, por
dentro. Não faltavam os vinhos, os assados,
os frutos, mas também os sumos, e para os
mais enregelados, as infusões de ervas
aromáticas ou as vigorosas chinitas, ainda
sabendo a figo. Oh, tudo isso a par do
estímulo de companhias esbeltas, delicadas,
perfumadas, primorosamente vestidas,
sedutoras... E mais os apelos da
conversação! Dissertações sobre a situação
agitada que se vivia no Emirato... Mas acima
de tudo as controvérsias sobre o sentido da
Vida, seus terríveis dissabores, sua
efemeridade... Mas acima de tudo os seus
prazeres! E o sentido do Amor.
Muqaddam Ibn
Muafá, o Cego de Cabra, ali perto de
Córdova, fazia parte daquele grupo, pois os
longos serões exigiam a presença dos poetas
consagrados. Corria o ano de 880. Ibn
Hafsún, o proscrito, regressava do Norte de
África e era recebido com as honras devidas
a um caudilho que lança o rasto da revolta
Goda. Aquela noite iria ficar memorável. A
presença de Omar Ibn Hafsún tinha feito
reunir senhores e suas famílias, todos
vindos das redondezas. Um serão que iria ter
uma repercussão inesperada na Poesia das
Hispânias.
O velho
Muqaddam tinha estado à altura das
expectativas, apesar da comparência doutros
poetas, cortesãos e ambulantes, e da
concorrência que entre eles se estabelecia.
Tinha dito poemas doutros poetas, tinha
cantado, tinha dito poemas seus já antigos,
tinha improvisado outros mais. Uma noite
especial. Até as mulheres tinham ido
espreitar às janelas de reixa, para ouvir os
descantes. E, surpresa, o Senhor tinha-lhes
acenado:
– Que é que
fazem aí? Desçam! Desçam, juntem-se à festa!
Hoje a noite é nossa!
...E todos,
sem excepção, homens e mulheres, entre os
vapores perfumados da noite primaverilmente
fresca, entoaram antigas canções, quase
esquecidas...
Uma noite
gloriosa. Daquelas que só acontecem uma vez
na vida.
Chegou,
porém, o momento em que o frio começou a
apertar. O velho Muqaddam sentia os ossos
enregelados. Pediu licença para se recolher.
Muqaddam
chegava agora ao seu aposento, um recanto
abrigado que lhe reservavam na zona da
criadagem. A sua amiga favorita, uma jovem
escrava do serviço das cozinhas, acendia
para ele um caldeirão de brasas e
colocava-lho no meio do aposento. Como
sempre, chegava meio tonto... A noitada, a
escrava que habitualmente se ocupava dele no
decurso do repasto, enternecida pelos seus
olhos sem vida, o jovem copeiro que
solicitamente lhe renovava o recheio da
taça... Muqaddam chegava no seu andar
pesado, lento, cauteloso. Naquela madrugada,
porém, não eram só os vapores do álcool...
Apoiado ao jovem copeiro, conseguiu
sentar-se.
– Senta-te aqui, ao meu lado – disse ao
jovem. – Tenho aí onde podes escrever, pega
numa pena, tenho as palavras a dançarem-me
na mente...
Distendeu as
pernas, pesadas da gota e do álcool. À sua
mente cambaleante, estimulada pelas
sensações despertas pelas vivências da
noite, ocorreu uma ideia, uma coisa
esquisita, que não soube definir...
Muqaddam
fechou os olhos... A brisa fria continuava a
entrar pelas frinchas do postigo,
cantava-lhe qualquer coisa que ele não
conseguia agarrar... Desapertou o cinturão
bordado a lantejoulas, o fivelão de prata...
Fechou os olhos para olhar interiormente a
sensação indefinida...
Era a avó.
Era a avó quem cantava... Cantava uma canção
de outras eras, uma canção que aprendera na
infância quando acompanhava a mãe à fonte ou
a ir lavar a roupa à ribeira... E cantava-a
em adulta, durante as duras lidas da horta,
ou quando se sentava ao tear... As antigas
palavras dançavam na extremidade de um raio
de sol que nascia, bruxuleavam na chama da
candeia ainda acesa – mas ele não podia
vê-las... Sentado aos pés do leito, tacteou,
procurando o alaúde. Tentou dedilhar um
poema, uma canção... Aquela canção... Tantas
vezes a tinha ouvido, com a displicência dos
jovens que dizem para consigo “Esse tempo já
lá vai”... E nessa noite, as cantadeiras
tinham entoado a mesma copla... Tentou
dedilhá-la. Sorriu, satisfeito, quando lhe
apanhou a toada... Continuou. A mesma
copla... e tantas outras, semelhantes...
Tinha sido uma noite diferente, aconteceu
por acaso, sem se perceber como... Talvez
que a presença de Omar Ibn Hafsún, o nobre
descendente de Godos, os seus relatos das
saudades da sua terra, dos seus amigos, da
família... A descrição dos perigos que tinha
corrido... Assunto poucas vezes abordado,
houve quem se lembrasse de falar, mesmo que
de forma velada e indirecta, das suas
origens de antanho, referindo a necessidade
óbvia e incontroversa da conversão, as suas
vantagens, não só as materiais, certamente,
mas sobremaneira, as espirituais também...
No fundo, lá bem no fundo da alma, tinha
acontecido que todos se tinham regozijado
por ali estarem, todos juntos, falando do
tempo antigo, contando histórias de família,
histórias de falecidos vizinhos, comparando
duas religiões, duas filosofias, dois modos
de vida... Todos os convivas se tinham
sentido irmanados num sentimento de unidade,
os acepipes nessa noite tinham sabido
melhor. E tocadores e cantadores, todos sem
excepção, tinham colaborado de forma
desusada. E a grande surpresa! A grande
surpresa dessa noite, tinham sido as
cantadeiras jovens quem tinha trazido à
lembrança dos presentes, de forma
espontânea, soltos, à vontade, numa noite de
justas poéticas sem fim, tinham trazido de
novo à vida os velhos cantares da poesia do
povo... Afinal, a Poesia do povo peninsular
não estava esquecida... Todos os comensais,
liberta a saudade pela suavidade que o bom
vinho desperta nos corações amorosos, tinham
cantado as aquelas coplas em que as moças
donzelas faziam as suas queixas das suas
coitas de amor à mãe, ou confessavam ao
ingrato namorado que sem ele não poderiam
viver...
– Que dizes?
– perguntou ao jovem. – É isto, não é?
– Sim,
Mestre, acho que vai muito bem.
– Então,
canta comigo...
Mamma ayy habibi
sua al-gumella saqrella
e el qollo albo
e bokella hamrella
– Ainda sabes o que
isto quer dizer? – perguntou Muqaddam.
– Sim,
Mestre, a minha mãe ainda canta estas
coisas. E é assim que ainda se costuma falar
na minha casa... – Acompanhando-se ao
alaúde, cantou em língua Árabe:
– Mãe, que amigo!
A cabeleira é ruivita
O colo branco
e vermelha, sua boquita
– É o que isto quer dizer? Bem me parecia...
– E insistiu – Continua, continua! Vocês
deram-me uma noite de sonho! Eu nunca tinha
ligado a estas cantigas, e agora estão a
parecer-me tão belas! Parece que as oiço
pela primeira vez!...
O jovem
prosseguia, incansável, sem sono, contagiado
pelo entusiasmo do cego, cantando no seu
dialecto original, o dialecto popular, a
Língua dos Cristãos arabizados, meio latina,
meio visigoda, meio árabe...
Ké faré mamma
mio al-habib est ad yana
E depois, transpondo
para Árabe, a refrescar a memória do velho
Mestre:
– Que farei, mãe,
O meu amigo está à porta
Novamente, no seu
dialecto familiar:
Sabes ya mio amor
ke kata-me el morire
imsí, ya imsi, ha bibi
no se, sin te ber,
dormire.
Já sabes, meu amor,
que sem ti vou
morrer...
Vem, oh, vem, meu
amigo,
Como posso dormir,
sem te ver?
O sol saía agora completamente. Cantava a
Primavera na brisa ainda fresca da manhã. O
velho aedo disse ao ajudante:
– Esta manhã. Estás por minha conta! Vamos
fazer uma coisa, e vai ser mais complexa que
um jogo de xeiques! Vais estar com toda a
atenção, não quero enganos!
– E o que será assim tão importante, Mestre?
– Vais escolher aí uma copla dessas. Escolhe
mesmo a que mais te agradar! Canta-a lá para
eu ouvir...
O rapazinho cantou:
Tanto amare tanto
amare
habib tanto amare
enfermeron olios
nidios
e dolen tan male.
– Muito bem! É linda, mesmo linda! – O velho
pensou um pouco... – Agora, vamos arranjar
rimas, quero palavras do povo, ajuda-me a
pensar!
– Rimas, mestre?!
– Sabes o que são rimas, não sabes?! Então,
vá lá! Pensa em palavras, palavras simples,
que rimem umas com as outras!
– ...Palavras árabes?
– Não percebes?! Coisa fácil: quero palavras
árabes, do povo, palavras simples, e que
façam rima entre si!
– Mestre, como vou conseguir isso?
– E para que queres tu a cabeça – para o
cutelo?
– Não! Claro que não! – O jovem respirou
fundo a recuperar o fôlego. – Mestre, não me
diga essas coisas, já sabe que eu não gosto.
– Fizeste mal a alguém? Não fizeste, pois
não?
– Não, Mestre, não faço mal a ninguém,
mas... Ibn Hafsún andou fugido...
– Porque matou um homem e teve que se
proteger da desforra da família do morto.
Não sabias? Mas ele agora foi perdoado,
deixa lá isso. Não faças tu mal a ninguém, é
o que interessa. Bem, e deixemo-nos de
coisas, vamos às palavras! Quero fazer um
poema novo!
– Então, e a copla cristã?
– Oh! Essa vai ser a grande novidade neste
poema – vamos usá-la como remate!
*
Naquela noite terá nascido, de facto, um
poema novo.
...Segundo a tradição, Muqaddam escolhia
primeiro as palavras do Povo, palavras da
língua Árabe, coloquiais, despretensiosas,
para que comandassem as rimas do poema que
ia fazer nascer; com elas, construía um
pequeno poema estrófico – pequeno, mas
complexo como um jogo de xeiques: em
primeiro lugar um mote, com seus dois versos
e a rima previamente escolhida; depois, uma
quintilha onde nos seus primeiros três
versos mudava a rima e nos dois seguintes,
voltava à rima inicial, estribando-se nela
para dar movimento e unidade à construção;
seguindo-se depois mais umas novas estrofes,
sempre nos mesmos moldes; e para finalizar,
como ele próprio dizia, uma homenagem à avó
e à mãe com quem tinha aprendido a cantar –
uma bela estrofe da Lírica tradicional dos
seus antepassados Cristãos, na sua Língua
cristã, a rematar o poema em Árabe como uma
finda,
uma saída.
Um estranho poema que condensava num só
sentimento, numa só expressão, as suas duas
Línguas, como um colar de pérolas de duas
voltas; e forte e eterno, como o seu
cinturão de lantejoulas. Por essas ambas
razões, lhe chamou MOAXA’HA.
BIBLIOGRAFIA
principal:
= Além das minhas recordações de
Algarvia, as duas principais fontes que
consultei para este conto:
James T. Monroe
– “La Poesía HispanoÁrabe durante el
Califado de Córdoba – Teoria y Prática” (na
Net)
Jesús Greus
– “Así vivieron em al-Andalus” – col.
Biblioteca básica, História, Editora
Anaya – Madrid, 2009.
***
Uma versão prévia
deste conto foi publicada no blogue (Por
Ondas do Mar de Vigo) em 6 de Agosto de
2012:
http://myriamdecarvalho.com/blog/