José Manuel Simões

Insólita Viagem

José Manuel Simões

Bombaim: Às portas do Inferno

Um táxi amarelo e preto, enferrujado, cobra-me uma fortuna, deixa-me no meio de homens em tronco nu a dormirem no ladrilho de uma suposta agência de viagens. Aproxima-se um mini bus, alguém insiste para eu entrar, oferece-me hotel e haxixe de Caxemira ou de Abgani. Diz que um “é puro e o outro tem químicos”. Não durmo há 24 horas nem sei quanto pesam dez gramas nem quantos euros são cem rupias. Já estou dentro da viatura em movimento quando constato que o homem tem cara de bandido. Lá fora há gente espalhada em cima de tábuas e carros de mão, cartões de papel que cobrem as pedras da calçada. Está escuro e abafado.

Não demorou até chegar ao hotel, guardado por um homem alto e magro, vestido de preto, bigode farfalhudo maior que o rosto. Sento-me no sofá, sempre com o cara de bandido a acompanhar-me, sorriso amarelo e olhar posto em permanência na tentativa de me sacar dinheiro. Diz que os colegas que estão na recepção comentam que eu devo ser israelita: “É que eles são muito amigos dos indianos”, explica, falsamente cativante. O empregado, tratado com desdém pelo que diz ser patrão, traz-me um chai, chá com leite com uma quantidade inacreditável de açúcar, o outro a insistir na transacção da droga, eu que já lhe havia dito que não, ele a repisar, negociante, chato.

Na rua a madrugada, o cenário decrépito. Respiro o colapso de Bombaim, percebo que a proeminência local foi coisa do passado, aquando capital económica e maior mercado da Índia. Na penumbra, aproxima-se um idoso, ar sábio pelos óculos redondos, longas vestes sujas e barba branca. Pela primeira vez ouço a inevitável questão repetida até à minha exaustão, agora leve, curiosa: “Where come from?” Depois, parcas palavras para pedir dinheiro.

Entra um homem no hotel, camisa às listas aprumadas, bigode, cabelo cortado à escovinha. Arrota insistentemente enquanto fala, senta-se ao meu lado sem me dirigir palavra. Parece-me debilitado e doente. Recordo-me que por aqui a malária ataca, violenta, que o surto da doença está a provocar complicações ao nível do cérebro, rins e pulmões. A ameaça está a tomar proporções gigantescas. Nos subúrbios da cidade morrem famílias inteiras.

O negociante volta a atacar a presa, uma mão em cima da mesa, outra pousada nos quadris com a palma enrugada. Arrota quatro vezes consecutivas e, para acalmar a dor de cabeça do colega dá-lhe uns incisivos golpes na testa com a ponta dos dedos.

O homem alto, de bigode maior que a face, abre a porta a um jovem com tiques femininos, sorriso matreiro nos lábios curvados. Chama-se Aditya, é bem-humorado e assumido: “Ser gay na Índia é algo de muito complexo. Os indianos não são tolerantes e eu nunca fui aceite pela sociedade por causa das minhas tendências sexuais. Mesmo no meu círculo social ninguém – nem mesmo a minha família – me aceita. Ainda acredito que os gays e as lésbicas vão transformar o século XXI na mesma escala em que Einstein mudou o XX. Devido ao nosso activismo, as categorias humanas não são mais masculino, feminino, neutro. Queremos direitos iguais e pretendemos mudar a nossa classificação. Não podemos continuar a ser marginalizados”, diz-me, panfletário, sem que lhe tenha perguntado nada.

Ao seu lado, Ismael dos arrotos conta que é casado e tem dois filhos mas, “tal como a maioria dos indianos, tenho algumas amantes, casadas, que estão sempre disponíveis para fazer amor comigo. Tu mesmo tens quantas quiseres. E não precisas de usar preservativo. Quando se acaba a relação lava-se o pénis com a própria urina. É assim que se desinfecta. Aliás, a urina é um bom remédio para muitas doenças. Se tiveres uma contusão ou um hematoma bebes a primeira mijada da manhã e ficas bom num ápice”. Reafirma que experimentou “várias vezes” e garante a eficácia da receita. Parece-me que estou a ouvir Marlon Brando no papel de Coronel Kurt em Apocalipse Now: “o inferno é bom para ti desde que consigas sobreviver por lá”.