
sem retorno
Joaquim Coelho
O MAU
EMIGRANTE
Traduzo. Nunca
penso em inglês.
Pelo menos, nunca coisas
sérias.
Os meus pensamentos involuntários
criados em língua inglesa são sempre (e
apenas?) sound-bites, provavelmente
recuerdos
inconscientes e involuntários de milhentos
filmes americanos e de letras de músicas rap
— onde abundam os "fuck", os "shit", os
"motherfucker" e outras pérolas semelhantes
— obviamente ofensivas para os nativos da
língua de Shakespeare.
“estes
imigrantes são como baratas (…)
Na minha família, a
emigração — sobretudo a da "época de ouro"
do êxodo lusitano para fora de portas, nas
décadas de 60 e 70 do século passado — é uma
instituição com alicerces tão profundos
quanto remotos: da Europa (Bélgica, França,
Holanda, Suécia, por exemplo) aos
continentes americano e africano (Brasil,
Venezuela, Canadá, EUA, Angola e África do
Sul) e, passando ainda além da Taprobana,
até na desgraçadamente longínqua
Cangurulândia. E isto são apenas os sítios
que a minha mãe se lembra.
— Aquela casa além
foi mandada construir por uma prima do teu
pai, a Guilhermina, dos Lentiscais, que está
na Austrália e que casou com um moço (de ali
de ao pé, do Esteval dos Mouros) chamado
Manel dos Cucos.
Ou uma coisa assim
desse género. Aliás, os nomes dos primos
emigrantes da família são sempre "muito
algarvios", nomes como Gregório, Arsénio
(que nome espectacular), Patrício e Inácio;
frequentemente casados com Quitérias,
Zélias, Amélinhas e Felisminas. Eles e elas
oriundos de lugares cujas designações
parecem sempre falsas ou inventadas à
pressa: Almeijoafras de Baixo, Monte do
Parral, Cerro da Monchina, Casa dos Pires...
Mas, como se vê, todas dignas de figurar nas
palavras cruzadas do jornal da Associação
Portuguesa de Toponímia.
Todo o imigrante
que aqui chega devia ser obrigado a aprender
inglês
Começa que não
consigo aturar esta estrangeirada durante
muito tempo. Tudo bem, eu também já reparei
que, como vivo e trabalho no estrangeiro, as
probabilidades de me cruzar com estrangeiros
são (bastante) elevadas... Eu sei, eu sei...
Mas é mais uma questão de tempo. O que quero
dizer é que, ao fim de dois anos (mais mês,
menos mês) fora de Portugal, tudo me começa
a irritar: a começar pela língua, lá está.
Juro, nunca percebi
como os meus familiares emigrantes conseguem
meter tanta estrangeirice no seu discurso,
enquanto eu não quero ter de falar inglês
nem em Inglaterra. Eles, não; eu bem que os
ouço aí, em Portugal, quando falam uns com
os outros: em cada três palavras, uma é em
português, uma na língua do país onde estão
emigrados e a terceira, acho eu, em klingon.
No próximo mês, "o bom emigrante".

- n.11• abril 2020