Cante na Alma


O Cante
Desidério Lucas do Ó

Cantar é muito bonito. O que eu mais gosto é ouvir os homens cantar na taberna do meu tio Coelho. Às vezes vou lá espreitar. Fico à porta e vejo tudo o que se passa lá dentro: a taberna escura, os homens com grandes bigodes, quase todos com a barba crescida mas todos juntos; uns encostados ao balcão, outros à sua frente, todos de copo na mão, uns com labisas, outros com copos mais pequenos, todos muito sérios e tão concentrados no cante que nem me veem.

Gosto muito de ouvir o que começa, o ponto. Ele está com um ar muito sério, canta com muito preceito, todos os outros a ouvi-lo, até que ele acaba. Quase antes de ele acabar começa o alto, tem uma voz diferente, parece mais voz de mulher. Fica tudo calado a ouvi-lo e, de repente, entram todos a cantar ao mesmo tempo. Até parece um trovão bonito que faz tremer as paredes da taberna! Alguns ficam com as veias do pescoço e da testa muito inchadas, parece que vão explodir. Eu acho que quando for grande também vou cantar assim… Fazer o alto, é bonito, sinto o cante como se fosse como as andorinhas que voam para baixo, para cima, dão grandes voltas e até parece que vão cair mas continuam com toda a calma, como se voar e cantar fossem as coisas mais fáceis deste mundo.

Quando a cantiga acaba há outro que começa, no mesmo estilo, uma quadra nova e depois volta a entrar o alto e os outros caem-lhe em cima, todos ao mesmo tempo. Às vezes parece-me que eles estão ao desafio, como na bola, todos querem ser melhores! Alguns altos ficam mais tempo a cantar sozinhos, lá no alto, como as corujas, mas depois os outros voltam a entrar mas a voz dele ouve-se sempre, lá em cima. Quando acabam de cantar dizem coisas engraçadas como “arre macho”, mas a verdade é que não está macho nenhum na taberna! Outras vezes cospem para o chão e bebem mais um copo, dizem que o cantar seca a garganta.