Daniela Graça

Espelho Cinemático

Daniela Graça

“Une femme est une femme” em memória a Anna Karina

A atriz Anna Karina faleceu a 14 de dezembro de 2019 aos 79 anos. Anna é um ícone do cinema e o seu falecimento é uma enorme perda para o mundo da Sétima Arte.

Anna nasceu na Dinamarca e emigrou para Paris aos 17 anos. Para além de uma carreira extensa enquanto atriz foi também modelo, realizadora, cantora e escritora. Mas é no cinema, e ao lado do realizador francês Jean-Luc Godard, que criou o seu maior legado e os filmes pelos quais mais se destaca. Anna, uma atriz de talento inegável, é considerada por muitos a cara que representa a Nouvelle Vague. Foi a musa de Godard e sua esposa entre 1961 e 1967. Protagonizou vários filmes do cineasta como “Le Petit Soldat“, “Une femme est une femme”, “Vivre sa Vie”, “Pierrot le Fou”, “Alphaville” e “Bande à Part”.

A atriz maravilhou audiências com o seu charme e beleza representado várias personagens inesquecíveis, cada uma com as suas idiossincrasias, e através das quais brilhou ao explorar uma amálgama de nuances como sentimentalidade, timidez, jovialidade, melancolia, impertinência, um sentido de humor irresistível, entre tantas outras mais. 

A Anna Karina era carismática, elétrica e hipnotizante, e penso que a maioria dos espectadores nunca se esquece da primeira vez que a vê atuar, o que foi o meu caso e a razão por querer refletir sobre “Une femme est une femme”, o primeiro filme em que a conheci e uma obra que revisitei muitas vezes.

“Une femme est une femme” traduzido para português significa “Uma mulher é uma mulher”. O filme estreou em 1961 e é a segunda colaboração de Anna Karina com Godard, sendo, no entanto, a primeira a estrear devido à censura imposta em “Le Petit Soldat”. O Festival Internacional de Cinema de Berlim premiou a obra com o Prémio Especial do Júri e Anna Karina com o Prémio de Melhor Atriz por demonstrar qualidades raras numa atriz que tinha acabado de iniciar a carreira.

“Une femme est une femme” é um filme de comédia, drama, romance e um musical. É uma obra marcante da Nouvelle Vague e uma das grandes obras-primas de Godard. É um filme inovador e criativo que continua a ser uma lufada de ar fresco décadas depois, cimentando-se como único e irreverente.

O enredo do filme é bastante simples: Angela (Anna Karina), uma dançarina de cabaret, deseja desesperadamente ter um filho com o seu namorado Émile (Jean-Claude Brialy), mas este é relutante à ideia e para alcançar o seu sonho seduz o amigo Alfred (Jean-Paul Belmondo), que está apaixonado por ela, provocando ciúmes em Émile. O triângulo amoroso questiona, ao longo da ação, se o que estão a viver é uma comédia ou uma tragédia, questionando o amor e a relação complexa entre homem e mulher.

É um filme vibrante em forma e conteúdo, que se destaca por ser o culminar de vários talentos sob a visão arrojada e visionária de Godard. As trocas de diálogo são inteligentes, repletas de humor e atrevidas sendo acompanhadas por uma banda sonora que exalta o cariz bizarro das discussões. No entanto, a banda sonora tem uma particularidade muito singular já que é marcada pela dissonância: começa e termina abruptamente, e em momentos que esperamos ouvir som há apenas o silêncio, como por exemplo, na atuação da Angela no cabaret que quando começa a cantar a música desaparece restando apenas a sua voz. O filme é uma homenagem aos musicais clássicos e simultaneamente quebra as regras convencionais dos mesmos.

Nesta carta de amor ao cinema, Godard desafia convenção atrás de convenção criando assim o seu estilo único e experimental, fazendo meta-referências a filmes da sua autoria e referências a outras obras e figuras do cinema; as personagens estão conscientes da presença do espetador e quebram constantemente a quarta parede ao olharem para a câmara, dirigindo-se e falando diretamente com a audiência. É um filme deslumbrante com uma mise-en-scène harmoniosa que nos revela imenso sobre quem as personagens são e o desempenho do trio de atores é exemplar e fascinante.  A cinematografia de Raoul Coutard captura toda a vivacidade das cores ricas que sobressaem no grande ecrã, das personagens, e da Paris dos anos 60.

“Une femme est une femme” mantém-nos agarrados ao ecrã desde da sequência de introdução até ao fim do filme, com Angela a dirigir-se à audiência e piscar-nos o olho uma última vez, depois de retorquir ao namorado “Je ne suis pas infâme, je suis une femme” (não sou infame, sou uma mulher), que para além de ser um trocadilho inteligente, é também relevante, já que a grande questão do filme é a mulher e a beleza, confusão, impertinência e desejos que a caracterizam.

Anna Karina desempenha em “Une femme est une femme” uma das melhores atuações da sua carreira e é um dos elementos-chave para a excelência e magia deste filme. Angela é uma personagem cheia de conflitos internos encarnada com leveza, ternura e tremenda beleza por Anna. Os maneirismos, olhares, expressões e hábitos com que compõe a personagem permanecem connosco, resultando numa atuação apaixonante e memorável.

Com o seu charme a talento, Anna Karina encantou o público e marcou o grande ecrã durante anos e em troca o Cinema cristalizou-a no tempo e imortalizou-a. Obrigada, Anna, e até sempre!