Movimento & Ilusão


“Água Mole”, um poema sobre a desertificação
Catarina Calvinho Gil

O cinema de animação estabeleceu, desde os seus primórdios, um compromisso com os espectadores: estimular a sua imaginação. Fugindo à representação óbvia do mundo e cortejando a fantasia, a animação evoluiu lado a lado com o cinema para gestos e olhares cada vez mais complexos e diversificados sobre a realidade.

Afirmava o cineasta português João Mário Grilo, durante uma aula de realização cinematográfica por si lecionada, que “o cinema é a construção de um olhar”. Um olhar atento sobre o mundo e sobre as pessoas. Um olhar multidimensional, construído pela relação entre autor, espectador, personagem e o próprio cinema. Um olhar honesto lançado ao primeiro toque do lápis no papel, da mão a envolver a plasticina, da agulha sobre o acetato, do dedo a empurrar o alfinete… Um olhar que desafia o espectador a mergulhar nas imagens e tomar consciência daquilo que simbolizam.

Nessa dimensão metafórica do cinema, a animação expande orgulhosamente as suas potencialidades de reflexão e interpretação ambiental, social, política e cultural, numa poética visual e sonora que tão graciosamente convida o espectador a refletir. Ora perante o mediatismo de determinado tópico, ora perante temáticas igualmente urgentes mas pobremente divulgadas, a animação é uma belíssima ferramenta para desconstrução e reconstrução de realidades a fim de as oferecer ao espectador através de renovadas perspetivas. “Água Mole” (2017) de Alexandra Ramires (Xá) e Laura Gonçalves é, no legado animado português, um bonito exemplo da capacidade da animação na documentação do real sem dele ficar refém.

O filme adapta para ficção, em jeito de documentário e com um toque experimental, um conjunto de viagens feitas pelas realizadoras ao interior de Portugal, os registos sonoros que captaram, as conversas que tiveram e o ponto que descobriram transversal às quatro aldeias por onde passaram: a desertificação demográfica. E com a desertificação, o esquecimento… O esquecimento ao qual a aldeia esboçada por Xá e Laura se recusa a submergir.

Numa era cujo progresso económico aparenta sobrepor-se a tudo o resto e nos vemos cercados por um frenético fluxo de informação, o esquecimento parece tornar-se uma consequência inevitável. “Água Mole” é a construção desse olhar do cinema que nos desafia a ver além de si e nos convida a não esquecer. Um olhar sobre o mundo e sobre as pessoas, de uma forma crua mas igualmente bela. Recheado de metáforas visuais que documentam uma realidade – atual – social e política do país, o filme constrói uma espécie de arquivo essencial à preservação da memória.

Ao retratar os últimos habitantes de uma aldeia à beira do esquecimento, envoltos em recordações e amor pelo lar que recusam a abandonar, o filme de Laura e Xá tatua no espectador a memória de um interior recheado de histórias para contar. A memória de um interior que flutua, impermeabilizado às noções de progresso de uma era digitalizada. A memória de um interior que flutua, com vozes ainda em coro para a celebrar. A memória de um interior que flutua, pois, neste belo e cru poema sobre a desertificação.

(2019-10-28) 

* Imagem do filme “Água Mole” (2017) de Alexandra Ramires (Xá) e Laura Gonçalves. Fonte: otrabalhodaxa.blogspot.com

https://doi.org/10.23882/2184-5689-191028